Richard Dawkins, em “Deus — Um Delírio”, considera covardia não assumir a inexistência de um Deus
11 setembro 2022 às 00h00
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A plena satisfação com um bom texto acontece e perdura após o término da sua leitura. É como um bom vinho cujo sabor permanece no paladar por muitas horas após a degustação. “Retrogosto” é como os enófilos denominam essa sensação. Prazer semelhante a que se fixa na mente após o término de um bom livro como “Deus — Um Delírio” (Companhia das Letras, 510 páginas, tradução de Fernanda Ravagnani), do cientista britânico Richard Dawkins.
Uma leitura satisfaz quando a redação é escorreita, clara, e elegantemente elaborada. Neste quesito Richard Dawkins nada deixa a desejar. Escreve de modo primoroso. É um bom redator. Entretanto, a leitura completa-se se o texto, além da forma, é denso, rico de conceitos e informações. O que é o caso deste livro. A exposição ganharia beleza se fosse rica em metáforas poéticas, o que não é o caso aqui.
No prefácio, já de saída, o autor mostra que sabe o que quer e como sabe querer. Tem posições corajosamente assumidas. Sem tergiversar assume não estar escrevendo para divertir, mas para tomar partido. Ele, ao defender com veemência o ateísmo e atacar sem cerimônia as religiões, deixa claro estar fazendo proselitismo. Escreve com o objetivo de converter a humanidade à sua crença. Tem a convicção de ser Deus um delírio e explica por quê. É tão veemente em seus argumentos que, sem falsa modéstia, profetiza: “Se este livro funcionar do modo como espero, os leitores religiosos que o abrirem serão ateus quando terminarem”.
Dawkins não é um neófito. Formado pela Universidade de Oxford, Inglaterra, professor na Universidade da Califórnia em Berkeley, onde é titular da cátedra de Compreensão Pública da Ciência, palestrante requisitado e autor de diversos livros, entre eles “Deus — Um Delírio”, que é um best-seller na Europa e Estados Unidos.
Com esse curriculum seria impertinente imaginar ser ele um ingênuo. Um ignorante das barreiras a vencer para a conversão de um religioso ao seu ateísmo. Mas não se intimida. Pretende “levar os religiosos a pensar racionalmente a sua crença, trocando-a do orgulho ateu pelo amor à ciência”. Como também ousa quando coloca como foco o combate à doutrinação infantil. Rebela-se ele: “Nunca me canso de chamar a atenção para a aceitação tácita, por parte da sociedade, da rotulação de crianças pequenas com as opiniões religiosas dos pais. Elas são pequenas demais para ter opinião. Não existe criança cristã: só filhos de pais cristãos”. Para ele o simples fato de dizermos “criança católica” ou “criança judia” é uma forma de abuso infantil comparado até ao abuso sexual.
A doutrinação desde a infância, assumida no texto, cria adultos reféns de tabus. Um deles, segundo o autor, “é a crença de que a fé é especialmente vulnerável às ofensas e que deve ser protegida por uma parede de respeito diferente daquele que os seres humanos devem ter uns com os outros”. Vai além. Se os ateístas saíssem do “armário”, superando o existente preconceito, a sociedade ficaria surpresa com a quantidade e principalmente pela qualificação dos seus adeptos. Livrar-se dos tabus inculcados na infância exige uma mente esclarecida e uma postura corajosa.
A posição do autor é radical. Não transige com a dúvida dos agnósticos. Considera covardia não assumirem a inexistência de um Deus. Ainda que os considere identificados com os ateístas no objetivo de livrar a humanidade dos males causados pelas religiões e pela crítica severa aos crimes históricos do catolicismo.
Não considera Dawkins ser a posição dos agnósticos, com respeito a Deus, como uma postura de modéstia. Ao não poder provar a inexistência de Deus, eles preferem a dúvida ativa, um respeito aos que baseados na fé asseguram a Sua existência. Como proselitista ele não se permite deixar espaço para a dúvida.
Desnecessário dizer a opção do autor à teoria “evolucionista” para explicação da origem do mundo. O que faz todo o sentido. Se partimos do pressuposto de que, se existe algo, alguém criou. Se um Deus… quem criou este Deus? e os outros deuses que se seguirão em uma regressão infinita?
Esta e outras justificativas à existência de Deus são cuidadosamente criticadas no texto (convincentemente), como a necessidade de explicar a nossa existência e a de uma força superior para conter os vícios humanos. Ao que se contrapõe a história que mostra serem as maiores atrocidades da humanidade cometidas justamente pelas religiões em nome de Deus.
A desconsideração do Velho e do Novo testamento, se aceita com base nas análises de Dawkins, assim como a realidade dos personagens Moisés, Jesus Cristo, e as fábulas dos milagres, abala os alicerces das religiões judaicas-cristãs. Um livro escrito por mais de um milhar de autores e ao longo de milênios não tem credibilidade. A Bíblia não é a palavra de Deus. Moisés não é o “profeta” e nem Jesus o “redentor”. Os milagres nada mais foram do que embustes a enganar ingênuos. Se Deus é onisciente, onipotente, não necessita de milagres e intermediários para salvar a sua criação. Estaria Deus, segundo Einstein “jogando dados”?
Quem não deve ler este livro?
Este não é um texto para fanáticos que se recusam a rever as suas verdades. Nem para os ignorantes que enfiam a cabeça na areia para “livrar-se” das ameaças. Menos ainda para os que estão confortáveis com a ditadura dos tabus, que lhe insuflaram na infância.
Este é um livro para quem gosta de questionar com base na ciência e não na fé as suas verdades. Assim fiz. Tirando desta leitura um grande proveito. Terminei de ler como um enófilo com o retrogosto intelectual. Degustei com prazer está leitura, que devo à feliz recomendação do Euler de França Belém.