O verme que se acreditou divino
04 setembro 2022 às 00h00
COMPARTILHAR
A Terra segue o seu curso de maneira metódica e previsível, indiferente aos nossos sentimentos. Ao dia segue-se a noite, a cada estação uma outra, os rios correm para o mar… Os humanos também têm a sua rotina, indiferente aos nossos desejos. À juventude segue-se a velhice, as alegrias alternam-se com as tristezas, as conquistas com as perdas… Assim, inexoravelmente caminha o nosso mundo.
Fisicamente, evoluímos da infância até a fase adulta e involuímos na velhice. Crescemos, amadurecemos e encolhemos. Mudamos a postura, a fisionomia e, para pior, o vigor. Iniciamos e terminamos a vida sendo carregados, se chegamos a uma idade avançada. Toda a pompa e grandeza não resistem ao tempo. Assim, inexoravelmente terminamos em cinzas.
Mentalmente também seguimos um curso. Temos etapas mentais a viver. Também são fases de evolução e involução. Ao menos duas delas são marcantes: a da onipotência e a da impotência. Na primeira delas, na ascensão, acreditamos tudo poder. O mundo, tudo e todos, está ao alcance do nosso querer. Não vemos limites à nossa ambição. Somos glutões, queremos provar de tudo; possessivos, ter tudo; dominadores, subjugar todos. As conquistas amorosas, queremos todas as desejáveis; a vida social, todas as disponíveis; o trabalho, sem limites; as diversões todas as possíveis. Assim, inexoravelmente, como um semideus, vamos nos sentindo onipotentes.
A realidade, no entanto, nos impõe limites. O vigor da juventude não se sustenta com a idade; o tempo é insuficiente para se fazer de tudo; o emocional trava as nossas ações e os êxitos têm sombras dos fracassos, que são limites às nossas ambições. Assim, inexoravelmente o semideus toma consciência da sua impotência.
Ao ímpeto e volúpia com que enfrentávamos as oportunidades da vida, a disposição de desafiar o que desse e viesse, a ânsia de explorar todas as oportunidades, cedem vez à cautela, à prudência e ao respeito à sorte. As doenças e a queda da vitalidade tornam a ameaça da morte um fato presente. Assim, inexoravelmente as frustrações tornam-se nossas companheiras.
Nada como uma longa vivência, se tivermos sensibilidade de apreender da experiência, para estabelecer uma ordem de valores racional. Só o confronto com a realidade para quebrar a presunção. O corpo exaurido, o tempo escasso, as ilusões perdidas e os sonhos desfeitos nos dão a modéstia da nossa potência. De tanto repetir as emoções vêm a insensibilidade — tanto para o sucesso como para com o fracasso. As novidades exploradas são águas passadas. Não movem moinhos de ilusões. São sonhos que se mostraram passageiros. Nada mais do que simples devaneios, que vão paulatinamente morrendo. Assim, inexoravelmente vamos compreendendo que somos meros frutos do acaso.
Ao contrário dos semideuses, os humanos descobrem que as conquistas realizadas, os fracassos enfrentados, não valem nada perto de um único amor, o da família e de uns poucos amigos. Tudo isto aprende-se melhor: — se se tiver subido ao pódio dos vencedores e dele caído; — e, se houver maturidade adquirida para encarar com sabedoria os êxitos e as adversidades. Esta vivência frutifica em humildade, ao descobrir que na vida tudo tem limites. Assim, inexoravelmente vamos nos tornando mais humanos.
Nesse teatro da vida, depois do ato final é a hora da verdade. Quando as cortinas do palco caem; quando os atores ficam a sós, é o momento de reflexão. É o momento da dúvida: — que papel representei? Valeu a pena? Por que continuar se os apupos e os aplausos terminaram? Por que não encerrar a carreira nesse momento?
Não seria esta a hora do onisciente, do semideus, acertar as contas com a sua impotência de ser humano? Não seria a hora de despojar-se de tudo que acumulou e que agora repudia? Não seria o momento de abandonar o palco cedendo a posição conquistada? Se assim for, inexoravelmente seria um fim melancólico de um verme que se acreditou divino.