Entenda a importância de se ter uma eleição em dois turnos
25 setembro 2022 às 00h00
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Se não me falha a memória, o filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004) definiu a “democracia como um regime para nos livrar dos piores, não para escolher os melhores”. Não há como negar a força desta ideia na defesa da Democracia. Ela nos permite de forma pacífica livrar-nos dos indesejáveis. O que sempre pode acontecer. O que nos regimes autoritários é feito pela força. Muitas vezes com derramamento de sangue inocente. Na democracia a alternância no poder é feita pelo voto.
Na prática, porém, as eleições em um único turno deixaram um gosto amargo na boca dos eleitores. Raramente podia-se votar no candidato da sua preferência. Subsistia uma insatisfação no eleitorado ao não escolher o candidato identificado com as suas ideias e ideais. Tanto que é lugar-comum e de frequência recorrente, nas rodas de amigos, a concordância de que nunca votamos a favor, mas sempre contra alguém. Na verdade, não usamos o voto para eleger, mas para rejeitar um candidato.
Esta tinha sido a tônica das eleições até o advento dela em duas votações. Com esta temos à escolha as duas oportunidades: a de eleger e a de rejeitar. Na primeira votação, pelo menos em teoria, vota-se para eleger o candidato que melhor retrata as nossas aspirações — é um voto ideológico. É eleição no sentido positivo, pois é a escolha daquele que representa a nossa vontade. Um adepto da liberdade individual pode votar na primeira votação no candidato que valoriza o individualismo. Um adepto do socialista pode escolher aquele que valoriza o coletivismo. Na segunda votação, o voto é pragmático. É um voto negativo dado a um candidato que não representa a vontade do votante.
Os dois turnos eleitorais dão oportunidade de atender às duas aspirações: o voto ideológico e o pragmático ou útil. Infelizmente estas condições não estão claras nas mentes dos eleitores. Os analistas políticos não se detêm a analisar e orientar o eleitor. Os candidatos que lideram as pesquisas não têm interesse em esclarecer essa situação. A eles não convém o voto ideológico. Pois, em busca destes eleitores, os candidatos têm que ajustar os seus compromissos para cooptar os seus votos no segundo turno. Não por menos preferem o voto útil.
Os políticos declaram, quando muito, que a segunda votação é uma “outra eleição”. Mas não explicam as diferenças. Não enfatizam ser a primeira escolha ideológica. Nem alertam o eleitor de não ser “perdido” o voto em candidato sem chance eleitoral. Nenhum voto é perdido, pois o mesmo que elege pode rejeitar.
O eleitor deve estar consciente das diferentes situações. Votar no primeiro turno em candidato que não comunga com as suas ideias é dar a ele uma legitimidade que não conquistou nas urnas. Quando um candidato no primeiro turno obteve 40% dos votos, estes são a medida da sua eleição, que seria distorcida se acrescida de votos úteis. O candidato não tem o direito de se arvorar como tendo sido escolhido pelo número de votos da segunda votação. Ele, o vencedor, não representa a vontade de todos os votos que recebeu no segundo turno. Só os colhidos no primeiro turno.
Ao enfrentarmos as próximas eleições devemos ter presente o modelo teórico para votar adequadamente. Se o candidato da escolha está sem condições de vitória, nem por isto deve deixar de receber o voto dos que comungam com as suas ideias. Esta prática, se difundida, serviria como correção do fato de sempre votamos no menos ruim.
Como as boas ideias e os bons candidatos podem despontar se são capados no nascedouro? Os que os apoiam devem mostrar a sua força. Votando ideologicamente estamos construindo o futuro e combatendo os inconvenientes do voto útil.
Coerente com esta análise, na primeira rodada, o voto deve ser ideológico, idealista. Não se deve aceitar a ideia do voto pragmático na primeira eleição. O voto útil (pragmático) é um recurso oferecido pela segunda votação — é o voto para ficar livre dos piores. Votar para evitar o pior, não é eleger, mas rejeitar.
Na primeira votação vota-se com o coração. Vota-se naquele que as suas razões identifiquem como o ideal. Seja idealista. Na segunda votação, vote com o fígado para eliminar as bílis. Seja pragmático. São situações distintas que exigem um comportamento adequado e correspondente. Só assim poderemos alterar a triste realidade para ter uma democracia que enseje a escolha dos melhores.