Bordeaux, a cidade mundial do vinho: você sabe combinar a bebida com os alimentos?
15 outubro 2023 às 00h01
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De Bordeaux — Nos seus oitenta anos ele cultivava uma barba branca que terminava na altura do peito. Era seu motivo de orgulho por ser única na cidade. Ele sabia disso — o que o levava a cofiar a linda barba continuamente.
Um dia, sentado no banco do jardim, aguardando a hora da missa das 10, durante a qual a elite da cidadezinha exibia os trajes e joias… e ele, a sua barba, um menino se aproxima e olhando firme nos seus olhos pergunta: “Vovô, quando você dorme a barba fica dentro ou fora do cobertor?” Essa questão nunca tinha passado pela cabeça do ancião.
Como acontece muitas vezes na vida, em vez de uma resposta, a pergunta nos traz uma dúvida. Nos cria um problema. Isto foi o que aconteceu — com a incerteza de onde colocar a barba, o velhinho nunca mais dormiu na vida. Passava as noites em claro tentando encontrar o melhor lugar para a sua venerável barba.
A exemplo do vovô da piada, em vez de uma barba, eu convivia tranquilamente com os meus vinhos. Harmonizava os brancos com peixes e pratos leves; tintos leves com massas e molhos de tomate; os tintos pesados com carne vermelha; e os brancos licorosos com as sobremesas. Tudo funcionava satisfatoriamente até o dia que visitei o Museu do vinho de Bordeaux.
Reafirmei lá que beber vinho, mais do que um exercício da gastronomia, tornou-se uma arte. Não faltam boas leituras de vários autores credenciados. As vinícolas fazem degustação que são precedidas da história da casa, das cepas e da produção. São verdadeiras aulas para treinar na degustação de um vinho. Há um ritual que engloba todo o processo de escolha, serviço e degustação. De todo o processo o mais valorizado é a harmonização com os alimentos.
Diante de um esquema tão sofisticado para quem quer levar a sério o que ditam os enólogos, o enófilo com frequência comete erros inadmissíveis aos olhos dos experts. Um muito comum é servir o Sauternes (um vinho doce) com sobremesa doce. Também é o referir-se a este vinho como sendo um vinho de sobremesa. Dizem eles: tome o Sauternes com Rockefort ou com lagosta e sirva Champagne com os doces.
Quem visita, em Bordeaux, o Museu do Vinho, a par de encantar-se com a majestade do edifício, aprende tudo sobre o vinho no mundo. O museu conta a sua história milenar — um dos primeiros alimentos a ser conservado pelo homem.
Em vasto espaço, nos arredores da cidade, que margeia o Rio Garonne, a instituição se apresenta como uma exibição de luxo, criatividade e tecnologia. Nas exposições didáticas transmite teoria; nas interações, distingue os paladares e as sensações gustativas. É um programa de duas horas ou mais, que termina com o direito a degustar gratuitamente um dos vinhos em oferta.
Bordeaux (bord’eau) é a cidade do vinho. Ela tem neste produto e seus fornecedores a base da sua economia. É uma grande cidade — 813 mil habitantes. As suas grandes avenidas são ladeadas por edifícios do século XVIII, todos na altura de quatro pavimentos. Os seus infindáveis bares e restaurantes com mesas na calçada fervilham de jovens até altas horas da noite. A cidade tem muitas universidades — o que explica a sua alegre vida noturna.
A Catedral de Santo André, em estilo gótico, é monumental e tem um órgão que toma toda a largura da igreja. O Grand Teatro, construído pelo arquiteto Richelieu — homônimo do ministro de Luiz XIII —, destaca-se pela dimensão e beleza arquitetônica.
Nesta temporada em Bordeaux para visitar suas importantes vinícolas, em vez de me trazer mais segurança, igual ao velhinho da barba, colocou-me como Sócrates. Descobri que de vinho também “só sei que nada sei”. O mundo do vinho é vasto demais para este modesto apreciador da bebida.
Concluí, diante da sensação de impotência para dominar a arte de degustação do vinho, que doravante vou esquecer todas as regras e vou beber do meu jeito, do jeito que gosto, vou deixar para os “snobs” degustar teoria. Vou esquecer tudo o que me ensinaram, vou queimar os meus livros e jogar fora os meus manuais. Só praticarei doravante o que manda o meu coração.
Afinal o vinho é como as mulheres, a gente gosta ou não gosta. Ninguém consegue mesmo as entender.