Voltar os militares à caserna, um grande desafio para Lula, se eleito
03 julho 2022 às 00h00
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Com Bolsonaro, a administração federal foi “inchada” de militares em cargos civis; fazer o caminho contrário não será coisa simples
Uma das grandes tensões desta corrida eleitoral está na relação entre os militares e as pré-candidaturas colocadas à disputa da Presidência. Isso porque trata-se da busca de reeleição por parte de um governo altamente militarizado. Para alguns, mais do que isso: com uma lista de fatos e com bons argumentos, é possível atestar que seja um governo militar.
Bastaria dizer que, nos últimos anos, os fardados passaram a ocupar cada vez mais o espaço dos civis na administração federal, processo que disparou a partir de 2018, sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), especialmente nas funções gratificadas mais bem pagas. Estudo preliminar feito pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), coordenado pela pesquisadora Flávia de Holanda Schmidt e divulgado pela revista “Veja” em 31 de maio, mostrou que a atual gestão elevou em 70% a presença de militares em cargos de natureza civil.
O período em consideração pela pesquisa vai de 2013 (ainda no primeiro governo da petista Dilma Rousseff) a 2021. Durante esse período, a presença de militares em cargos e funções comissionados cresceu 59% no quadro geral – ou seja, incluindo o que é naturalmente ocupado por integrantes das Forças Armadas. Se se levar em consideração apenas o número de militares em postos civis, o aumento foi de 193%.
Outro detalhe é que a porcentagem de militares nos cargos fica maior à medida que a gratificação é mais alta. Nas funções gratificadas superiores (DAS 5 e DAS 6), a presença deles mais do que triplicou (204%).
Para bom entendedor, basta o que foi dito até aqui para compreender que o atual governo priorizou a ocupação da estrutura de governo com gente da caserna em vez de civis. Também terá entendido, tal entendedor, que milhares de militares, hoje em cargos da administração geral, ganham muito mais do que em seus postos de origem. Portanto, afora a questão ideológica, só o aspecto financeiro já seria um bom motivo para que esse contingente e suas famílias apoiassem com todas as forças a recondução de Bolsonaro.
Nesse sentido, há grandes incógnitas sobre a conjunção dos termos “militares” e “eleições”. Como vão se comportar as Forças Armadas durante o período de campanha? Qual será a reação diante de uma contestação ostensiva mais do que prevista do resultado das urnas por parte do atual presidente, no caso de uma derrota? E depois, como lidarão com a transição para um governo mais “civil”? Aceitarão a inevitável e necessária desmilitarização do Planalto?
O que há, no momento, são sinais de como os militares estão lidando com os fatos da pré-campanha. Em relação a Bolsonaro, não se veem críticas ou ao menos resistência ao comportamento de cooptação contínua que o presidente faz das Forças Armadas, como se elas estivessem sempre lhe dando salvaguarda e, como tem um ditado segundo o qual “quem cala consente”, se mantém no ar o enigma incômodo. Mais ainda: eles parecem ter assimilado o discurso de desconfiança das urnas eletrônicas do atual mandatário.
O mais recente episódio de tensão militar na pré-campanha veio após declaração de Ciro Gomes (PDT) em uma entrevista à rádio CBN. O ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, e os comandantes das três Armas – Marco Antônio Freire Gomes, do Exército; Almir Garnier Santos, da Marinha; e Carlos de Almeida Baptista Junior, da Aeronáutica – protocolaram uma notícia-crime contra o presidenciável por supostamente “propalar fatos, que sabe inverídicos, capazes de ofender a dignidade ou abalar o crédito ou a confiança que estas merecem do público”.
Notícia-crime, na linguagem cotidiana, é o fato criminoso que chega ao conhecimento da autoridade competente para investigá-lo. Em outras palavras, mais usadas, o equivalente a registrar um boletim de ocorrência, o popular “BO”.
Mas o que Ciro disse na conversa com a emissora? Antes de tudo, o contexto é importante: ele falava sobre as questões da região amazônica tendo como mote a execução do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, assassinados a tiros no município de Atalaia do Norte (AM), no dia 5 de junho – Dia Mundial do Meio Ambiente, por coincidência.
O trecho da fala do presidenciável que causou mágoas nos militares foi o seguinte: “Bolsonaro destruiu as raríssimas bases de comando e controle: ele desmontou o ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade], desmontou a Funai [Fundação Nacional do Índio], desmontou o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], destruiu a capacidade operacional das Forças Armadas, que não têm efeito, verba, tecnologia para administrar a imensa faixa de fronteira seca. E isso acabou transformando o território nessa holding do crime, claramente protegida por autoridades brasileiras, inclusive das Forças Armadas.”
A crítica de Ciro, pois, se coloca muito mais em relação ao que fizeram das Forças Armadas – assim como dos demais órgãos – do que em relação à instituição em si – como ele também não critica ICMBio, Ibama ou Funai como entidades. No que há de mais pesado desse trecho, ele é direcionado a Bolsonaro, que “acabou transformando o território [Amazônia] nessa holding do crime”, a qual, segundo o pedetista, é “claramente protegida por autoridades brasileiras, inclusive das Forças Armadas”.
A peça denunciatória da Defesa e dos comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica acusa o pedetista de “incitar, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade”. “O Ministério da Defesa e as Forças Armadas repudiam, veementemente, as irresponsáveis declarações do senhor Ciro Ferreira Gomes, que acusou as Forças Armadas de serem coniventes com o crime organizado na Amazônia. (…) Tais acusações levianas afetam gravemente a reputação e a dignidade dessas respeitadas Instituições da Nação brasileira, cuja honra, valores e tradições se confundem com a própria identidade do povo brasileiro”.
Por fim, os queixosos falam que “não é admissível, em um Estado democrático, que sejam feitas acusações infundadas de crime, sem a necessária identificação da autoria por parte do acusador”.
Cada vez mais, as Forças Armadas querem convencer – ou, talvez, “se convencer” – sobre argumentos que se baseiam em uma metonímia: na visão de seus comandantes, um sargento da Aeronáutica – como o que foi pego com 39 quilos de cocaína na Espanha, em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) – representa a Aeronáutica. Ou que um general como Eduardo Pazuello, que sobe em palanque para proselitismo político estando na ativa, é o todo do Exército. Ou seja, militares consideram que suas instituições são atingidas diretamente pelas críticas que a imprensa, políticos ou mesmo cidadãos comuns quando seus colegas não honram as instituições. A saída é culpar o mensageiro.
A reação à posição de Ciro talvez não seria a mesma se fosse outro o pré-candidato: Luiz Inácio Lula da Silva. Não porque os militares não se sentissem igualmente ofendidos, mas pelo fato de o petista representar uma perspectiva de poder muito mais concreta. Em outras palavras, o comandante supremo das Forças Armadas em janeiro de 2023 pode vir a ser Lula; Ciro, apesar de postulante, não é uma “ameaça real”.
Como presidente da República por oito anos, Lula já esteve na posição de comando dos militares. Foi um tempo harmonioso, do qual, admitem os próprios comandados, não tiveram do que se queixar: se não houve privilégios em salários e benesses, como com Bolsonaro, houve grande melhoria em condições de trabalho, infraestrutura e equipamentos: para a Aeronáutica, o começo do processo de compra dos caças Gripen, que viriam a substituir os obsoletos Mirage na guarda do espaço aéreo – tanto Lula como Dilma Rousseff, sua sucessora, deram total autonomia para que a FAB escolhesse da melhor forma; para o Exército, a aquisição de um moderno sistema de vigilância das fronteiras, o Sisfron; para a Marinha, além de outro sistema semelhante, mas para a chamada “Amazônia Azul”, o Sisgaaz, além da parceria com europeus para o projeto de um submarino nuclear.
Os tempos, porém, são outros. Lula, se eleito, vai respirar um ambiente muito mais tenso do que vinte anos atrás. Com os fardados, o petista vai ter de vestir seu melhor traje de conciliador. Uma roupa a que já está acostumado, mas em seu maior desafio.