Era fim de 2003 e quem passava pelos lados do Parque Vaca Brava, em Goiânia, notava esculturas gigantes parecendo pairar acima das águas do lago. Para olhos leigos (ou laicos?), as grandes estátuas se integravam de forma harmônica com a paisagem e produziam ali uma cena bonita, para muitos, e diferente, para outros. Somente os adeptos dos religiões afro-brasileiras e os mais curiosos saberiam que ali estavam representações de orixás.

Mas outros olhares se sentiram atingidos por aquela exposição, que era então realizada com apoio da Prefeitura da capital. E, liderados por um jovem filho de pastor que depois se tornaria político, milhares de evangélicos foram ao parque se manifestar exigindo a retirada daquelas imagens. Entre os argumentos, havia o de que aquelas esculturas se referiam a demônios e atrairiam uma maldição sobre a cidade.

Vinte anos se passaram entre aquela intolerância religiosa e outra, na semana passada, em que um pastor da paulista Bastos, município a 554 quilômetros de São Paulo, voltou seus olhos para a imagem de Nossa Senhora Aparecida que havia sido colocada na entrada da cidade pela prefeitura local, ladeada por outra escultura – a da Bíblia Sagrada, símbolo dos evangélicos. A intenção da administração municipal era dar espaço aberto de culto a ambas as religiões, mas, no púlpito da Igreja Vida Nova, Sérgio Fernandes se indignava pelo fato de o poder público ter investido dinheiro no “Satanás vestido de azul”, expressão com que ele qualificou a Padroeira do Brasil para os católicos.

De uma intolerância à outra, nesses 20 anos, houve o registro de centenas ou milhares de ocorrências do mesmo tipo, em grande maioria dos casos tendo pastores e sacerdotes ligados a correntes pentecostais do cristianismo. A forma mais comum de isso acontecer é tão comum que, ainda na mesma semana passada, viralizou a filmagem de um suposto exorcismo executado em outra igreja evangélica, de localidade desconhecida. Nela, um homem, aparentemente também pastor, conversava com uma mulher supostamente possuída por Zé Pelintra e Maria Padilha, entidades originárias do candomblé e ali no culto tratadas como demônios. O corpo da “possuída” estrebuchava em pé fazendo os mesmos trejeitos para ambos os “espíritos”: o suposto Zé Pelintra dizia ter tomado conta do presidente Lula (PT) e que levaria o Brasil ao comunismo, à “destruição”, à “guerra”, à “maldição” etc.; já a suposta Maria Padilha estaria no corpo da primeira-dama, Janja da Silva. No fim, o condutor da atividade diz que vai tirar “Lula e Janja da Presidência”.

Nos três exemplos, política e religião se misturam. E no que se segue, também. É que no domingo, 1º, foram realizadas em todos os mais de 5,5 mil municípios do País as eleições para o Conselho Tutelar. Na véspera, 30/9, o jornal “Valor Econômico” publicou uma matéria com o título “Eleição de conselhos tutelares tem embate entre católicos e evangélicos”. As primeiras linhas do texto da reportagem servem para complementar a manchete: “Católicos e evangélicos esperam eleger um contingente representativo de conselheiros tutelares neste domingo pelo País”.

O Conselho Tutelar existe porque existe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei 8.069, de 1990, e sancionado pelo então presidente Fernando Collor. Por sua vez, o ECA é a normatização do Artigo 227 da Constituição de 1988: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Em outras palavras, o ECA é o marco legal e regulatório desse trecho constitucional.

É o mesmo processo que vem tomando conta da política convencional: a investida do fundamentalismo religioso, representado pela Bíblia, sobre o Estado laico, representado pela Constituição

Cada município brasileiro precisa eleger, por quatro anos, ao menos um conselheiro tutelar. Como nas eleições gerais, pode se candidatar ao cargo qualquer pessoa, apenas observadas as restrições de ordem legal ou criminal, obviamente. Como é uma eleição onde em tese não há partidos e como o poder não admite vácuo, ao ver esse flanco aberto, as igrejas abraçaram a oportunidade. De norte a sul, houve uma incidência muito acima da média de religiosos – pastores, pregadores, obreiros, líderes de células etc. – concorrendo às vagas e as preenchendo.

É o mesmo processo que vem tomando conta da política convencional: a investida do fundamentalismo religioso, representado pela Bíblia, sobre o Estado laico, representado pela Constituição. O projeto é claro há muito tempo e ficou explícito no slogan de campanha de Jair Bolsonaro (PL) adaptado de outro projeto que se envernizava do divino na primeira metade do século passado: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.

No Congresso, a bancada da bíblia e a maioria conservadora há muito fazem com que não progridam pautas consideradas progressistas, mas que evocam o espírito da Lei vigente desde 1988: daí não serem levados nunca a votação projetos de lei como a criminalização da homofobia, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, a descriminalização da maconha, entre outros. Como a coisa não anda pelo lado do Legislativo, entidades e mesmo pessoas físicas impetram ações na Justiça exigindo que se cumpram os direitos que a Constituição determina e tudo vai parar, por fim, no Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte precisa, então, dispor sobre um tema que deveria ter resolvido pelos parlamentares, que se omitiram, e acaba acusada por eles de “legislar”.

Ao mesmo tempo, na Câmara e no Senado avançam temas que querem criminalizar totalmente o aborto, a cannabis e retroceder os direitos de casais homoafetivos. Temas que vão de encontro ao que emana da Carta de 88. São projetos, portanto, inconstitucionais, mas que mostram como a bancada fundamentalista está atuando para quebrar a espinha dorsal do Estado laico.

O alvo agora, de diversas formas, é o STF, que tem sido um guardião cada vez mais solitário da Constituição. A ideia corrente no Legislativo de um projeto que praticamente extinga as decisões monocráticas dos ministros é um exemplo. Mas a própria nomeação dos quadros está na berlinda: o ex-presidente prometeu e cumpriu, ao escolher um nome “terrivelmente evangélico” para o Supremo, o pastor André Mendonça; e o atual não descarta colocar, no lugar de Rosa Weber, um homem cujas raízes são ligadas ao segmento, o advogado-geral da União, Jorge Messias.

Enquanto as igrejas avançam sobre a educação pública, exigindo que ao lado do evolucionismo de Darwin seja ensinado também o criacionismo cristão, um livro sempre faltou no material escolar dos alunos, do 1º ano do fundamental ao último dia de faculdade: a própria Constituição Federal, que na quinta-feira, 5, completou 35 anos. .

Ela – a obra-prima de tantos democratas, Ulysses Guimarães à frente – é a única arma disponível para vencer a teocracia que avança sem freios rumo ao poder, como fogo morro acima. A mais cristã das crianças precisa também saber cada inciso da principal lei de seu País. Citando Sergio Foglia, um sábio e saudoso padre italiano que por décadas evangelizou brasileiros, é preciso ter a Bíblia numa mão e, na outra, o jornal – parafraseando-o, a Constituição. Até porque a lei de Deus sempre conversou com a lei dos homens.