Queiroga e Barra Torres provam: estabilidade é essencial ao serviço público

12 dezembro 2021 às 00h00

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Um, bolsonarista de ocasião, e outro, militar que honra o cargo ao qual foi designado; dois médicos, dois cargos e posições diferentes na crise sanitária
Segue abaixo um projeto de piada em forma de curta fábula. Qualquer conexão com fatos reais, claro, não são coincidência, pelo contrário, é o objetivo desta coluna.
Lançando suspeitas sobre um embarque apressado de animais refugiados, um casal de dinossauros tentava convencer outro casal, de unicórnios, a não se juntar àqueles bichos que partiam sabe-se lá para onde, apenas porque alguém havia dito que era necessário.
Depois de muito falar e pouco ouvir, o par de reptilianos lançou, por fim, o argumento final:
— É melhor perder a vida do que perder a liberdade!
E assim convenceram os unicórnios. Ao fundo da cena, lotada com todos os outros pares de animais, zarpava a arca de Noé.

A anedota, na verdade, é uma adaptação (ou livre descrição) de uma charge recente de Nando Motta, que recorreu à conhecida passagem bíblica do Antigo Testamento para aludir a uma, no mínimo, inusitada declaração do médico e ministro da Saúde – muito menos médico, aliás, do que ministro – Marcelo Queiroga.
Na terça-feira, 7, durante coletiva para anunciar medidas sanitárias para quem chegasse do exterior, Queiroga fez a seguinte declaração aos jornalistas: “Nós queremos ser, sim, o paraíso do turismo mundial. E vamos controlar a saúde, fazer com que a nossa economia volte a gerar emprego e renda. Essa questão da vacinação, como realcei, tem dado certo porque nós respeitamos as liberdades individuais. O presidente falou agora há pouco: ‘às vezes, é melhor perder a vida do que perder a liberdade’.”
Era uma reprodução de uma fala feita por Jair Bolsonaro (PL) em março, sobre o combate à Covid-19. Se alguém ainda tinha quaisquer dúvidas sobre em que time está jogando o titular da Saúde no governo federal, acabaram-se todas ao fim da declaração. Queiroga está cada vez mais tomado pelo bolsonarismo de ocasião. O ministro, na verdade, usa o cargo hoje muito mais política do que tecnicamente, pré-candidato que é nas próximas eleições e de olho grande no eleitorado radical que apoia o presidente até se ele jogar um bebê do alto da rampa do Planalto.

Tomando pela enésima vez o condicional se-o-Brasil-fosse-um-país-sério, é difícil acreditar que alguma nação com princípios civilizatórios aceitasse que o responsável-mor pela Saúde de seus cidadãos exalasse tal discurso, justificando geração de “emprego e renda” em detrimento da integridade física dos compatriotas no meio de uma pandemia. De civilizatória, a gestão atual do Brasil não tem nem o disfarce. E vem tornando todos os que se apinham no poder partícipes cúmplice dessa caminhada rumo ao fundo do poço moral e ético.
Por que Queiroga jogou seu diploma de médico no lixo e faz chorar Hipócrates? Parece óbvio que é o inebriar com o ar dos palácios e a pompa sedutora, embora transitória, que acompanha seu cargo. É dessa forma que o ministro, de ex-presidente da respeitada Sociedade Brasileira de Cardiologia, tornou-se um comissionado de um governo fora da lei.
Claro que isso diz muito do caráter de Queiroga, mas também fala muito sobre a condição em que se dá essa relação.
Isso porque, muito antes de rubricar no Diário Oficial da União (DOU) o nome de seu quarto ministro da Saúde, Bolsonaro já havia nomeado também outro personagem importante da semana que passou dentro do mesmo tema, mas atuando em polo oposto, o da ciência: o contra-almirante da Marinha e também médico Antônio Barra Torres, diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Seu nome e sobrenome visitaram as páginas do DOU em 25 de junho de 2019, quando Bolsonaro o conduziu ao posto máximo da Anvisa. Ainda não havia pandemia e à época a notícia foi coisa para canto de coluna de jornal. Barra Torres era grande amigo de Bolsonaro e isso talvez fosse visto como mais uma camaradagem patriota de algum ignorante no que deveria fazer em um governo cheio desse tipos, todos desastrados e desastrosos, de um Abraham Weintraub a um Ernesto Araújo.

Mas assim não é Barra Torres. Provam isso as ações da Anvisa na pandemia, especialmente a partir do suspense em torno da aprovação emergencial das vacinas anti-Covid. Agiriam os membros da agência de acordo com o que queria Bolsonaro, detrator número um da Coronavac? Era a aposta de muita gente. Perderam o dinheiro.
O contra-almirante e sua equipe mostraram dados técnicos e aprovaram, naquele momento, tanto a “vacina chinesa do Doria”, produzida no Instituto Butantan, como também a Oxford/AstraZeneca, que sairia pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Bolsonaro ficou calado.
Várias outras ações assim aconteceram desde então, em que a ciência e a técnica da Anvisa se opuseram à política e ao negacionismo do Planalto. Não foi diferente agora, com a pauta do passaporte de vacinação. No momento em que o médico-chefe do governo tinha o desplante de agir como um revolucionário de fancaria, do outro lado estava Antônio Barra Torres para deixar claro que a Anvisa tem emitido enviado “pelos canais competentes, desde o início da pandemia, notas técnicas elaboradas pelos servidores concursados da instituição (…) e assim o fizemos recentemente nesse tema tão discutido (…) o chamado passaporte vacinal”.
A Anvisa é um órgão auxiliar de quatro ministérios: Justiça, Saúde, Infraestrutura e Casa Civil. Mas não tem a decisão final no Executivo. Pode recomendar que o governo faça algo, mas não pode determinar que seja da forma que quer.
Mas tem algo que o presidente da República pode fazer com Queiroga, mas não com Barra Torres: demiti-lo. O cargo de direção de agência tem mandato. No caso, de cinco anos. Bolsonaro terá de engolir seco o comandante da Anvisa que preza pela ciência porque ele tem estabilidade no cargo.
É um caso exemplar para mostrar é necessário garantir ao servidor público o mínimo de segurança para exercer sua função sem ser coagido ou chantageado. Claro, se Queiroga tivesse suficiência de idoneidade teria se demitido em semanas, como o fez Nelson Teich, ao invés de agora fazer troça do próprio diploma. Ou teria se fingido de surdo e feito o que seria correto, como Luiz Henrique Mandetta, até a inevitável dispensa. Preferiu ser um Eduardo Pazzuelo de jaleco.
Contra Queiroga resta agora o deboche, a ironia, a zoação. É a arma que resta contra os poderosos, principalmente os indignos de exercer o poder. Melhor teria se ele tivesse bradado, como o Chaves do seriado, “eu prefiro morrer do que perder a vida!”. Faria mais sentido.