Por que Bolsonaro ainda importa
14 maio 2023 às 17h58
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As pessoas perguntam: por que ainda falam tanto de Bolsonaro, se Jair não é mais presidente? Por que tanta “perseguição”?, diriam alguns. “Não conseguem esquecer o ‘mito’, né?”, provocarão outros.
A questão não é exatamente a de “não conseguir” esquecer. É, curiosamente, a de “não poder” deixar esquecer. O bolsonarismo não é um movimento político comum. A bem da verdade, não é nem um movimento político. Para ser inteiramente justo com o que é de fato esse fenômeno, é necessário ir ainda mais adiante e classificá-lo de uma forma bem radical, como radical ele é: um movimento antipolítico.
Pela própria definição, a antipolítica em nada pode colaborar com a política – pelo contrário, como se observa pelo prefixo contido no termo. Seu objetivo é destruir as bases do sistema, como muitos militantes de extrema direita falam abertamente e até agem com disposição, como alguns milhares entre eles mostraram no 8 de Janeiro. “Destruir o sistema” inevitavelmente inclui aniquilar a política.
Jogar pedra na política é um passatempo do brasileiro típico, comum ou famoso. A agora saudosa Rita Lee dizia que não gostaria de ver nenhum político em seu funeral – como revelou, em seu funeral, o deputado estadual Eduardo Suplicy (PT-SP).
No imaginário popular, político está geralmente associado a alguém sempre pronto a fazer malandragens, que não trabalha, que usufrui de mordomias. Um mito – e aqui a referência é ao substantivo comum, não ao próprio – se compõe de pedaços de verdade, não existe uma mitologia de seres “totalmente outros”. Portanto, pode-se dizer que a classe política como um todo, pelo que produziu (ou não), fez jus ao menosprezo que sofre pela maioria da população.
Se boa parte dos políticos não é flor que se cheire, há ainda de ser considerada a outra parte, ou partes: as flores que, sim, se cheiram; e as flores que nem cheiram nem fedem.
E, mais do que isso, há a atividade em si: a essência da política é nobre. É abrir mão de ficar em seu próprio mundinho e fazer algo em prol da coletividade, sacrificando tempo, família e – por vezes, acredite quem quiser, isso existe – até dinheiro.
Para dizer três nomes de políticos conhecidos, dedicados ao ofício a vida inteira e que não ficaram fizeram nenhuma fortuna com a atividade: o ex-presidente Itamar Franco; o ex-vice-presidente Marco Maciel e o já citado Eduardo Suplicy, o único vivo entre os três e cuja família integra a elite paulista há muito tempo. Independentemente de corrente ideológica, não há o que falar de mal, em termos de probidade, de qualquer um desse trio. A exemplo deles, na mesma escala ou menos afamados, há outros homens públicos que fizeram ou fazem carreira dignamente.
É para essas pessoas, vocacionadas e abnegadas, que deveriam ser direcionados os votos a cada eleição. Mas não é assim que ocorre: não poucos fazem saem de suas atividades de origem – empresários, produtores rurais, agentes de segurança, servidores públicos, profissionais liberais, celebridades e subcelebridades etc. – para fazer nada mais que investimentos particulares com os mandatos que obtêm.
Jair Bolsonaro nasceu e cresceu como político desprezando a própria atividade nobre que exerce
Para esses, o gabinete só não vira sede de uma empresa por não poder ganhar um CNPJ. Há desses políticos em Goiânia, em Goiás, no Brasil inteiro. São gente errada no desempenho da atividade mais nobre de uma coletividade. Passam, às vezes, a vida inteira como chupins da coisa pública. E é por causa deles que as pessoas passam a verdadeiramente odiar a política e tudo que a lembre.
Jair Bolsonaro, um militar-sindicalista, que desprezava a disciplina da caserna e chegou a planejar táticas de guerrilha para forçar aumento no soldo – seu objetivo como líder classista no Exército –, nasceu e cresceu como político desprezando a própria atividade nobre que exerce. Parlamentar, disse em um programa de entrevistas na TV, ainda em 1999 que, se eleito presidente – então, uma hipótese bastante improvável –, fecharia o Congresso imediatamente. “Daria golpe no mesmo dia, (aquilo) não funciona”, respondeu ao apresentador. À época já eleito e reeleito pelo voto popular (inclusive na forma eletrônica), teve a pachorra de dizer: “Através do voto, você não vai mudar nada neste País. Nada!”. E qual a solução pregada pelo então deputado federal para melhorar a classe política? Fuzilar o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Para quem àquela época já entendia o básico do sistema democrático, ainda que numa democracia recém-nascida como era a do Brasil, isso seria caso de cassação sumária e até de prisão – aliás, como ocorreu acertadamente com Daniel Silveira (aquele que disse imaginar uma “surra de gato morto até ele miar” em ministro do Supremo Tribunal Federal), dois anos atrás. Em 1999, porém, todos resolveram contemporizar com a loucura e deixar o “doidinho de bairro” falando sozinho.
Só que Bolsonaro não falava sozinho. Muitos, bem mais do que se pensava, concordavam com ele e forçavam um autossilêncio porque ainda não sabiam, uns dos outros, que tanta gente tinha esse ódio concentrado sobre política e políticos. E quem juntou todo mundo e pôs todo mundo no mundo de Bolsonaro? O mundo das redes sociais e dos grupos de conversação.
E eis que o País chegou a 2018 com os brasileiros prestando mais atenção nas notícias falsas do WhatsApp do que nas informações certificadas. Bolsonaro foi eleito e a mesma experiência se repetiu durante a pandemia: as crenças disseminadas dentro da bolha prevalecendo contra as orientações da ciência. E é assim que as coisas seguem até o atual momento, em que a herança de Bolsonaro, mesmo fora do poder, são discípulos que o multiplicam na (má) qualidade como parlamentar.
Sim, esse pessoal viu que dá voto ser ruim, no sentido amplo do adjetivo. Que tem gente que não se incomoda com o mau gosto exalado pela baixeza e pela exaltação da ignorância. Às respostas deselegantes, ainda que às vezes sem sentido nenhum, deram o nome de “mitadas”. E a política? A política que se dane, porque eles não estão aí para construírem nada dela. Pelo contrário, como já foi dito: querem o circo pegando fogo para que os que tiverem mais condições saiam vivos e os demais nem sejam lamentados.
Bolsonaro ainda importa – e precisa importar durante muito tempo – porque ele é o resumo humano dessa parte da população que se convenceu de que é cada um por si e um conveniente Deus acima de todos, para dar a cada um as bênçãos e maldições que merece. Não há nada de coletivo produzido pelo bolsonarismo, porque ele é a essência da antipolítica.
É preciso que, ao contrário do que foi feito com a ditadura militar, o bolsonarismo, como filho bastardo dela, não seja jogado para debaixo do tapete. A operação policial para barrar eleitores no segundo turno, a minuta do golpe e o incentivo aos atos golpistas, o escândalo das joias, a fraude no sistema de vacinação, tudo isso precisa ser devidamente investigado e levado aos tribunais. É hora de as instituições levarem a sério o compromisso com a justiça e, mais do que isso, com a Constituição.