A investigação do Senado servira apenas para o cumprimento de uma formalidade necessária: é preciso registrar no papel o que já se sabe publicamente: o governo negou a gravidade da pandemia e trabalhou a favor do vírus

Se pedirem para Jair Bolsonaro (sem partido) citar onde estão duas passagens da Bíblia, provavelmente ele não conseguirá. Ele é homem de um versículo só: Jo 8, 32. Traduzindo o código, esse é o versículo 32 do capítulo 8 do Evangelho de São João. “E conhecereis a Verdade, e a Verdade vos libertará”, transformado em lema de campanha do então candidato à Presidência e que virou um tipo de mantra para conferir a aura de religiosidade adequada ao convencimento de parcela do eleitorado cristão-pentecostal.

Dizem psicólogos e psicanalistas que as pessoas, ao buscar reforçar diante das demais certa expressão ou certo comportamento, tem algum tipo de problema relacionado, que leva a essa repetição. No caso, analisando as falas do presidente, a verdade parece ser não “o”, mas “um dos” problemas do presidente, se levado a sério esse postulado.

Não foram poucas as vezes em que o mandatário da República desmentiu ter dito algo que de fato dissera. O exemplo maior é o uso do termo “gripezinha” para se referir à Covid-19, o qual ele, ironizando Drauzio Varella – médico-celebridade que, bem no começo da pandemia, havia utilizado a expressão para dizer que a maioria dos casos da doença teria sintomas leves –, repetiu em pronunciamento em rede nacional. Fez isso em março, negou em dezembro.

Em tempos de comunicação total e em tempo real, nada passa em branco. O negacionismo pessoal do presidente, bem como de suas estratégias no governo – e isso não se refere apenas à pandemia, o Ministério do Meio Ambiente não nos deixa mentir – está registrado em áudios, fotos e vídeos.

Ex-ministro Luiz Henrique Mandetta depõe, diante do presidente da CPI, Omar Aziz, e do relator, Renan Calheiros | Foto: Agência Senado

Eis que surge uma indesejada comissão parlamentar de inquérito (CPI) sobre a condução da pandemia. Indesejada e talvez inesperada, já que, tendo conseguido eleger os presidentes das duas Casas legislativas – o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e o deputado Arthur Lira (PP-AL) –, o Executivo deve ter considerado “sob controle” qualquer tipo de ação da oposição no sentido de uma investigação política. Não contava com uma determinação do Supremo Tribunal Federal (STF).

Aqui é preciso pontuar que a decisão monocrática do ministro Luís Roberto Barroso, referendada pelo pleno, foi totalmente “dentro das quatro linhas”, para usar uma expressão do próprio Bolsonaro. Quem não estava jogando dentro da lei era o senador Pacheco, ao não instalar uma CPI quando o requerimento para tanto já tinha obtido as assinaturas necessárias entre seus colegas.

A CPI do Senado começou na semana passada e vai investigar o que o governo federal fez de errado na pandemia e os eventuais desvios de verbas enviadas a governadores e prefeitos. Na verdade, o que estará acontecendo, como foi possível observar pelos primeiros depoimentos, será apenas o cumprimento de uma formalidade necessária. É preciso registrar no papel o que já se sabe publicamente: que o curso da maior crise sanitária dos últimos cem anos no Brasil teria sido muito diferente não fossem as determinações contrárias à ciência do presidente Jair Bolsonaro.

4 médicos e 1 pandemia
Os trabalhos da CPI desta primeira semana deveriam ter tido a presença de todos os ministros da Saúde que atuaram no período da pandemia. Ao todo, quatro, pelo menos até o momento. Em tempo, uma questão pertinente: qual governo no mundo, além do brasileiro, trocou três vezes sua autoridade diretamente responsável pela condução das medidas de saúde no último ano e meio? Mais: qual deles optou por um general “especialista em logística” depois de bater de frente com as orientações de dois médicos?

Dos que foram sabatinados, todos por um dia inteiro, Luiz Henrique Mandetta foi o primeiro e mais incisivo. Do que disse e do que incrimina Bolsonaro, talvez a questão mais grave e que não se sabia de todo é que havia uma assessoria paralela do governo para a condução da pandemia. Ou seja, enquanto o ministro da Saúde fazia X, o governo, por meio desse grupo, planejava Y.

Como os critérios adotados por Mandetta eram os da Organização Mundial de Saúde (OMS), o que vinha de encontro a isso não se poderia chamar de científico. Logo, se infere que havia um comitê anticiência a embasar políticas públicas para uma pandemia. O alerta por escrito, feito pelo então ministro a Bolsonaro, de que o País poderia chegar a 180 mil mortes no fim do ano sem tomar medidas assertivas no combate à Covid também é fato grave e infelizmente bate, com uma margem de erro a menor, com o infame total de vítimas em 2020.

Em depoimento que foi subestimado pelos analistas políticos, o oncologista Nelson Teich acrescentou bastante gravidade à situação do governo federal. Com seu estilo discreto, que às vezes parece titubeante, ele confirmou que não teve autonomia para executar seu planejamento e que saiu por não aceitar avalizar a cloroquina nos protocolos oficiais e ver que o procedimento ocorreria, querendo ele ou não. Disse também que aceitou Pazuello como seu número 1 a pedido de Bolsonaro por acreditar que a especialização em logística do general poderia ajudar. A “logística” de Pazuello e sua equipe levou para vacinas do Amazonas para o Amapá. Faz sentido, as iniciais e as siglas são parecidas…

Marcelo Queiroga foi a grande decepção da semana entre as sabatinas. Disse várias vezes que estava ali como ministro da Saúde e não como médico ou presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, a qual dirigia antes de assumir o cargo no governo. E, durante todo o depoimento, fugiu da objetividade para não desagradar ao chefe. Enfatizou a vacinação, mas tergiversou todas as vezes em que o tema era a adoção da cloroquina ou do tratamento precoce. Ao não ser firme, deixou de prejudicar Bolsonaro, mas não se ajudou como profissional de saúde diante do juramento de Hipócrates.

O depoimento mais aguardado não ocorreu: o general Eduardo Pazuello mandou uma carta, com timbre do Exército, para dizer que não poderia comparecer por ter entrado em contato com dois oficiais suspeitos de estar com Covid-19. Dias depois, recebia a visita do ministro Onix Lorenzoni. O ex-ministro providenciou uma “saída pela direita”, mas a estratégia dura duas semanas. Após a quarentena, ou inventa outra desculpa ou vai sentar na cadeira elétrica da CPI.

Politicamente, a missão do governo é árdua demais. Além de ser minoria na comissão – tem apenas 4 aliados entre os 11 integrantes titulares –, se vê forçado a nadar contra a corrente, porque a corrente tem nome: chama-se Verdade.

A CPI seria desnecessária caso – ao contrário do que disse uma vez o então embaixador brasileiro na França Carlos Alves de Souza Filho (em frase erroneamente atribuída ao general Charles de Gaulle, presidente francês) – este fosse um País sério. Não é.

Se fosse, Bolsonaro nem teria sido eleito, porque não seria mais deputado após a apologia à tortura que fez em plenário ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016. Ao não “passar a risca” contra a barbárie naquele episódio, a Nação deu sinal verde para que a caixa de Pandora se abrisse. Para quem pensava que a tempestade perfeita seria a eleição de 2018, aquilo era só o trailer: tempestade perfeita, mesmo, é estar passando por uma pandemia gravíssima sob o governo de Bolsonaro.

O fato é que, à exceção de quem compõe a seita bolsonarista, o Brasil está exausto do desgoverno. A CPI da Pandemia pode ser o instrumento para começar a recolher os objetos de Pandora de volta à caixa. A verdade, de fato, liberta.