Com o desembarque do partido do prefeito eleito, o novo mandatário precisa “passar a risca” para não se perder. E o melhor meio é ter o plano de governo escolhido pelo eleitor como sua carta de navegação

O filme Cidade de Deus se tornou um ícone do cinema nacional. Dirigido magistralmente por Fernando Meirelles, a obra é, mais do que entretenimento, um tratado sociológico. Conta a história do menino delinquente Dadinho, que nos anos 60, início do bairro da zona oeste carioca, é uma criança que aterroriza a comunidade surgida do desalojamento de famílias de várias favelas, ação promovida como política pública por Carlos Lacerda, governador do extinto Estado da Guanabara de 1960 a 1965.

Zé Pequeno (Leandro Firmino da Hora), na cena clássica em que renega o apelido Dadinho | Foto: Reprodução

Quem assistiu ao filme sabe e se lembra bem da cena célebre: Dadinho cresce e se torna Zé Pequeno, o “dono do morro”, traficante temido por todos. Uma das mostras de sua perversidade é também uma das passagens mais chocantes do filme: usando seu poder supremo na favela, ele pune um garoto de uma turma de crianças com um tiro. Revólver apontado para o menino apavorado, pede a ele para escolher onde quer levar a bala, se na mão ou no pé.

A esse grupo de meninos se deu o nome de Caixa Baixa. Zé Pequeno os tratava com desprezo, mas, em meio a uma guerra de facções contra um rival, ele arma os pivetes com revólveres para garantir apoio. A benesse vira um presente de grego contra ele mesmo, a senha para a derrocada – o que eu disser a mais que isso será spoiler.

Todos esses três parágrafos para dizer que há alguma semelhança entre a Cidade de Deus de Zé Pequeno e a Goiânia do… MDB. De 2005 a 2020, o partido foi senhor da capital. Alguns diriam que o segundo mandato de Paulo Garcia (PT) – quando, ao ser reeleito, ele trocou praticamente a equipe inteira deixada por Iris na administração – foi um hiato nesse processo, mas os emedebistas ainda tinham o vice, Agenor Mariano, e muito poder na Câmara e era mais forte que o PT até no próprio Paço.

Corte rápido para a situação atual da Prefeitura de Goiânia. Com a aposentadoria de Iris depois de quatro anos de um mandato muito bem avaliado pelo conjunto da população – a qual, se fosse o caso, o conduziria de volta ao cargo pela quarta vez, caso ele assim desejasse –, o projeto de poder do MDB na capital teria uma sequência natural com Maguito Vilela. Para garantir uma maior segurança da vitória, era preciso “fechar a porteira” com uma fatia que ganhou bastante importância nas urnas: o eleitorado evangélico.

A turma da Caixa Baixa, que se rebela e toma o poder dos “donos do morro” | Foto: Reprodução

A costura política feita com o presidente estadual do Repu­blicanos, deputado federal João Campos levou um correligionário do parlamentar, o discreto vereador Rogério Cruz, a compor a chapa majoritária com o ex-deputado, ex-governador, ex-senador e ex-prefeito de Aparecida de Goiânia. Um portfólio portentoso perto da carreira política de dois mandatos no Legislativo municipal de seu vice.

A campanha eleitoral foi feita em meio à pandemia de Covid-19 e Maguito ficou doente. O eleitor, mesmo assim, confiou seu voto nele nos dois turnos. Juntava-se na figura do prefeito que queriam na cadeira do Paço simultaneamente a continuidade de Iris e a folha de bons serviços do eleito.

Mas Maguito não resistiu. Seu legado para Goiânia era o projeto, o qual Rogério Cruz teria de assumir. E, no primeiro pronunciamento sobre o tema, jurou cumprir a carta de compromisso da chapa.

Para tanto, seria muito útil, obviamente, contar com quem Maguito pretendia trabalhar. E os secretários estavam lá, já referendados e no batente. E Rogério Cruz, se não tinha experiência política no Executivo, era conhecido e reconhecido como um ótimo administrador na área de comunicação, pela TV Record.

Porém, a despedida de Maguito foi vista como uma oportunidade para duas turmas que não estavam no radar imediato: a da Igreja Universal, que controla o partido de Cruz, e os ex-colegas de Legislativo do agora prefeito legítimo pelo posto herdado.

Carta de navegação
O que o MDB tinha para barrar esse movimento? Apenas o principal: o projeto de governo de Maguito Vilela para a cidade. Diante da mudança de cenário e da sanha que se precipitou sobre cargos e nichos de poder no Paço, isso pareceu muito pouco e muito frágil. Sem a posição de proa na Prefeitura, o MDB/Zé Pequeno já não poderia mais controlar o assédio da turma da Caixa Baixa/Câmara–Republicanos.

Prefeito Rogério Cruz (Republicanos): nas mãos, decisão sobre plano de governo | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

O momento, ao fim de uma semana em que o desembarque do partido do prefeito eleito se deu de forma articulada e consistente, tem de ser de muita reflexão para Rogério Cruz. É preciso colocar uma carta de navegação em tela, para ter onde chegar. E não há documento de orientação mais precioso, mais válido e mais legítimo do que o programa de governo no qual a população votou.

Se quer fazer isso com novos nomes, sem o MDB – ou pelo menos sem aqueles emedebistas que Maguito teria designado –, é uma discricionariedade que o prefeito pode avocar para si. Sua equipe, suas escolhas. Mas, sem a “carta de navegação”, tudo se torna sem sentido. Governar para quem? Rumo aonde? Com que instrumentos? Para que finalidade?

Ninguém é inocente de achar que política não se faz com negociações às vezes questionáveis. Como o filho de um dos manda-chuvas da Câmara de Goiânia no comando da fiscalização ambiental do município ou um ex-vereador cheio de processos cíveis e criminais numa secretaria com a qual parece não ter nenhuma afinidade. Não é algo particular da gestão Rogério Cruz: isso ocorre em qualquer administração que busque se viabilizar. Vão-se os anéis para que não se percam os dedos.

Mas, repetindo, é preciso saber o que está fazendo até para firmar acordos desgastantes. Se o que tem em mira no horizonte é a concretização do plano de governo escolhido pela população, pode ser que valha a pena.

No meio desse engalfinhar de bastidores, em que para a conquista dos cargos com a janela aberta pela saída de cena do “Zé Pequeno” da vez vale dedo no olho e soco abaixo da cintura, Goiânia, por enquanto, continua sendo apenas um detalhe na paisagem. Fazer política boa não é fácil nem é doce. Mas é necessário aos bons homens públicos. É por vezes carregar a cruz, para ter a recompensa no fim. O prefeito Rogério não teve votos, mas tem a incrível chance de surpreender positivamente. Para isso, precisa traçar a risca no chão para o pessoal da Caixa Baixa. l