Lula é um homem de palavra? É provável que, como homem público, seja assim considerado no meio da política. Fazer política, criar relações na política, é algo que se dá com apenas uma ferramenta: a confiança. E ninguém conseguiria resultados positivos de tal magnitude como os que logrou o presidente durante sua trajetória, a ponto de ser considerado uma lenda viva que transcende as fronteiras brasileiras – aliás, vamos falar sobre “fronteiras” nas linhas abaixo deste texto –, não fosse também alguém respeitável dentro do ofício.

Mas se ele é, bem provavelmente, um homem “de” palavra no meio da política, o que se pode ter certeza evidente é de que se trata de um homem “da” palavra. Inegável como, por meio do que fala, Lula desperta emoções as mais diversas, em apoiadores e adversários. Não é à toa que o ex-aliado e hoje desafeto Ciro Gomes (PDT) o qualificou como um “encantador de serpentes”.

Ser “da” palavra significa, entre outras coisas, amar falar. Desde os tempos de líder sindical, Lula foi treinado na oratória. Sua dicção indefectivelmente oscilante, a voz rouca – mais ainda depois do câncer que superou na laringe, há cerca de dez anos – e o vocabulário popular compuseram o personagem. E várias de suas “tiradas” pelas décadas ficaram consagradas.

Em 1993, quando fazia pré-campanha para a eleição do ano seguinte – a qual perderia para Fernando Henrique Cardoso (PSDB) – em Ariquemes (RO), Lula disse que havia no Congresso Nacional “uma minoria de parlamentares” que se preocupava e trabalhava pelo País, em meio a “uma maioria de uns 300 picaretas que defende apenas seus próprios interesses”. Obviamente, a declaração foi rechaçada por parlamentares, que chegaram a acusá-lo de “antidemocrático”. A frase serviu de mote para dois anos depois a banda Paralamas do Sucesso gravar a música “Luiz Inácio (300 Picaretas)”, no álbum “Vamo Batê Lata”.

Durante seu último ano de governo, em julho de 2010, no auge da popularidade, o petista abusou de não medir o alcance de suas palavras e flertou até mesmo com o segundo sentido do que dizia. Como quando, ao assinar contratos sobre intervenções em rodovias no Rio Grande do Sul, aproveitou para criticar a fiscalização de obras públicas – à época havia o estudo do impacto ambiental da construção de um túnel no interior gaúcho no habitat de uma espécie de anfíbio. “O Brasil não pode ficar a serviço de uma perereca”, disparou.

Em janeiro de 2016, já com a Lava Jato em seu encalço, o então ex-presidente conversava com blogueiros na sede do Instituto Lula, em São Paulo, quando resolveu desabafar sobre as investigações de corrupção que o miravam: “Eu estou tranquilo. Tenho endereço fixo, todo mundo conhece minha cara. Se tem uma coisa que me orgulho (sic) é que não tem, neste País, uma viva alma mais honesta do que eu. Nem dentro da PF, do MP, da igreja e do sindicato. Pode ter igual”, disse à época.

Em maio de 2020, durante uma live com o jornalista Mino Carta, da “Carta Capital”, no início do período duro da pandemia no Brasil, uma fala para defender as classes trabalhadoras se transformou, na boca de seus detratores, em apologia ao vírus mortal. Discorrendo sobre economia, Lula fez uma crítica à ideologia de mercado. “Quando eu vejo os discursos dessas pessoas, quando eu vejo essas pessoas acharem bonito que ‘tem que vender tudo o que é público’, que ‘o público não presta nada’, ainda bem que a natureza, contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado coronavírus. Porque esse monstro está permitindo que os cegos comecem a enxergar que apenas o Estado é capaz de dar solução a determinadas crises. Essa crise do coronavírus, somente o Estado pode resolver isso, como foi a crise de 2008.”

Sua viagem à China se tornou um festival de frases fortes para alguns, desastrosas para outros, estratégicas para um terceiro grupo e bravateiras para mais um tanto de gente

Como qualquer liderança carismática, as palavras de Lula servem em favor dele e contra ele mesmo. São seu pódio e seu túmulo. E não há “media training” que dê conta de alguém com quase 80 anos e que considera que chegou até onde chegou também porque desenvolveu seu discurso de tal maneira.

Aqui entra em contexto as manifestações mais recentes do presidente. Depois de falas infelizes sobre seu algoz e principal desafeto, o ex-juiz e senador Sergio Moro (UB-PR), sua viagem à China se tornou um festival de frases fortes para alguns, desastrosas para outros, estratégicas para um terceiro grupo e bravateiras para mais um tanto de gente.

Da relação comercial com a China à guerra da Rússia contra a Ucrânia, a série de declarações do chefe de Estado brasileiro impactou na imprensa local e na geopolítica mundial – muitíssimo mais na primeira do que na segunda, diga-se – e obviamente não foi bem vista pelos Estados Unidos e pelos europeus, que enxergam na Rússia e na China – agora, muito mais na segunda do que na primeira – as grandes ameaças à hegemonia do Ocidente.

De fato, não deve ter agradado muito a seu colega do Norte, Joe Biden, Lula dizer que “é preciso que os Estados Unidos parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz”. Outra frase que não soou bem aos ouvidos do Tio Sam certamente foi “queremos que a relação Brasil-China transcenda a relação comercial”.

A equivalência que, na mesma viagem, fez entre os dois polos da guerra é repudiável de toda forma, já que, não interessam os motivos que Vladimir Putin tivesse, houve uma violação clara do território ucraniano. Mas há quase um ano, em maio de 2022, o atual presidente brasileiro já dizia algo próximo disso: “Às vezes fico vendo o presidente da Ucrânia [Volodymyr Zelensky] na televisão como se estivesse festejando, sendo aplaudido em pé por todos os parlamentos, sabe? Esse cara é tão responsável quanto o Putin”, afirmou então.

O fato é que Lula conseguiu, com suas frases ditas em solo chinês, produzir vasto material para elucubrações de setores da mídia e também dos corredores da diplomacia nacional. Não é a tradição política do Itamaraty, disseram alguns (e realmente não é). A cereja do bolo foi a visita do chanceler russo, Sergei Lavrov, nos dias seguintes à volta do presidente da viagem, que teve uma escala de negócios também nos Emirados Árabes Unidos.

Não se pode dizer que as polêmicas que envolveram as falas sejam “estratégicas”. Parecem mais evidenciar duas coisas que sempre se misturaram em Lula: a vontade de agradar ao interlocutor com quem negocia – no sentido amplo do verbo – e o puro fascínio que passou a ter pelo poder do próprio discurso.

Por outro lado, há uma superestimação por parte da imprensa brasileira sobre o alcance internacional de declarações, ainda que presidenciais, sobre os protocolos assinados oficialmente: em fevereiro, na ONU, o País reiterou a condenação à invasão da Ucrânia, e esse é o posicionamento oficial do Estado brasileiro. E, por mais que haja uma pretensão de ter grande importância, quem falou, para o entendimento dos ouvidos do Primeiro Mundo, foi uma nação daquele continente ao canto inferior esquerdo do mapa-múndi.