O Brasil caiu no conto do Posto Ipiranga

01 maio 2021 às 11h14

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Ministro Paulo Guedes foi fundamental para convencer parte da população de uma adesão de Bolsonaro ao liberalismo, mas o ministro mostra-se tão inepto quando o governo em si
Um acidente não ocorre apenas por um motivo, dizem os especialistas em estudos de fenômenos do tipo. É preciso que ocorra uma cadeia de equívocos para que uma fatalidade se cumpra.
Olhando em retrospectiva para o que levou o Brasil a eleger Jair Bolsonaro (sem partido) presidente da República, há várias razões conjunturais e estruturais. Podemos perder um parágrafo relatando algumas delas: o antipetismo (geralmente o motivo mais citado por análises simplistas); a busca de um nome “outsider”, que se posicionasse contra o sistema (mesmo que Bolsonaro fosse político eleito e reeleito desde 1988); colocar alguém com o discurso de livrar o País da corrupção e da criminalidade; a disposição de “libertar” o País da “ideologia esquerdista” e restabelecer a “ordem” nos costumes; eleger alguém que fosse autêntico no que dizia; e também (essa estrutural) a falta de entendimento do valor da democracia, talvez por uma base educacional insuficiente.

Cada um desses fatores, entre outros, serviu para trazer corações e mentes de eleitores para o lado de Bolsonaro. Mas não só isso bastaria para determinado tipo de eleitorado, mais exigente e de olhos voltados para o liberalismo. Era preciso “dar um terno” para uma campanha inegavelmente popular, embora igualmente tosca, que pudesse levar à eleição de alguém que não havia produzido praticamente nada para a política além de declarações e atitudes absurdas sobre regime democrático, mulheres e orientação sexual.
O verniz do convencimento para atrair esse eleitorado mais sofisticado passava pelo viés da economia, do Estado mínimo, da ideia maximizada de livre mercado. E foi aí que surgiu na curva da estrada o “Posto Ipiranga”. Paulo Guedes, um homem do mundo especulativo que nunca havia trabalhado com a coisa pública, garantiu a Bolsonaro essa salvaguarda necessária. E foi assim que, quando apertado mesmo nas questões econômicas mais básicas, um candidato a presidente passou a se orgulhar de não saber nada do tema e a indicar que deveriam procurar seu futuro ministro, que teria “carta branca”. Assim, como diria aquele gordinho do comercial da bandeira de combustíveis, “pergunta lá!”.
Pois Jair Bolsonaro foi eleito e, na prática, depois de dois anos e quatro meses do que deveria ser um governo, seu superministro da Economia se mostrou tão incapacitado para o cargo como tantos outros da equipe da Esplanada. A diferença é que desses outros já não se esperava muita coisa.
É verdade que parte dessa impotência gerencial veio da desidratação de sua pasta – desde o início do mandato, foram 12 importantes auxiliares defenestrados. Verdade também que não teve a tal carta branca, que Bolsonaro interveio na pasta várias vezes, mas a desconfiança agora é que nem com ela algo adiantaria. Mas não é só isso.
No superministério da Economia, não existe rota, não existe meta, não existe plano. E as pessoas começam a perceber, como na maior parte dos casos em que se faz uma elevação antinatural de um suposto guru, que estão diante de um charlatão. Em suma, Paulo Guedes é visto como um engodo.
Chamado de “Chicago boy” por pretensamente visar a aplicação da escola econômica ultraliberal da Universidade de Chicago – que guiou o Chile durante a ditadura de Augusto Pinochet –, Paulo Guedes, tanto quanto seu chefe, tem se mostrado um desastre como homem público. Tanto no mundo financeiro como entre empresários é notável a frustração com o desempenho do “Posto”.
O grande fruto do ministério, até o momento, foi uma reforma da Previdência que tinha sido praticamente acertada ainda no governo Michel Temer, que teve o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), como protagonista e a qual o presidente da República mais atrapalhou do que ajudou, tentando (e conseguindo, em parte) aliviar as perdas para sua base eleitoral, os militares. No mais, Guedes se vangloria de cumprir tarefas de rotina. De resto, as sonhadas privatizações e reformas andam a passos de tartaruga, para desespero dos liberais.
Desumanidade no discurso
Mais do que ter “somente” um desempenho insuficiente em sua área, o ministro tem tido uma sequência de gafes e declarações desnecessárias de não ficar atrás de Weintraubs e Ernestos. Algumas delas são nocivas. Outras, desumanas.
Na semana passada, sem saber que a reunião de que participava estava sendo transmitida ao vivo, o ministro da Economia desancou a China, maior parceira comercial do Brasil. Em suma, falou que os chineses inventaram o novo coronavírus – pior, disse isso usando a expressão bolsonarista-raiz “vírus chinês” – e que os americanos haviam feito uma vacina muito melhor do que a deles, citando a da Pfizer – que tem sede nos Estados Unidos, mas cujo imunizante para a Covid-19 foi concebido na Alemanha, pela empresa Biontech, por um casal de origem turca. Declaração indesculpável em um País cujo Plano Nacional de Imunização deve, no momento, 85% das doses à chinesa Sinovac, parceira do Instituto Butantan na produção da Coronavac – aquela chamada pelo presidente de “vacina chinesa do João Doria”, o governador tucano de São Paulo, desafeto e alvo de Bolsonaro.
Interessante e sintomático que, na grande imprensa nacional, outra declaração desastrosa no mesmo dia e do mesmo autor tenha repercutido muito menos. Em plena pandemia, quando o Brasil alcançava 400 mil vítimas, Paulo Guedes lamentou a longevidade da população como um mal para os cofres públicos. “O Estado quebrou. Todo mundo vai procurar serviço público e não há capacidade instalada no setor público para isso. Vai ser impossível (…) Todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130. Não há capacidade de investimento para que o Estado consiga acompanhar”.
Obviamente, qualquer ministro de qualquer área em qualquer país sabe que o aumento da expectativa de vida traz maior sobrecarga ao sistema previdenciário e ao setor público em geral. Nem por isso, Suécia, Finlândia, a Europa como um todo, Canadá, Japão, Austrália e outros países – onde as pessoas vivem mais porque chegaram a um índice de desenvolvimento humano (IDH) alto – passaram nem passarão a abreviar a vida de seus velhinhos para poupar gastos.
Em meio ao desenrolar de uma pandemia em que os que mais morrem são aqueles que mais precisam do Estado, seja por aposentadoria, pensão ou assistência médica, o discurso de Paulo Guedes deixa de ser apenas descolado ou desastrado. Pelo contrário, encontra harmonia com o de seu chefe, segundo o qual “é preciso deixar de ter medo e enfrentar o vírus” e “infelizmente uma parcela das pessoas vai morrer, lamento”.
É bom recordar aqui que, em suas declarações como ministro, Paulo Guedes se mostrou “liberal” só até a página 2: já chamou servidores públicos de “parasitas”, reclamou de doméstica ir à Disney, criticou pobres por não fazerem poupança(!) e os culpou pela destruição do meio ambiente e depreciou a mulher do presidente da França, Emmanuel Macron. Desta vez, porém, a fala de Guedes não é só desumana: para quem entende o contexto em que ela se dá, completa o combo de desprezo que o atual governo tem pela vida.
Resta saber quando o mercado, a imprensa e os civilizados vão mostrar com seu pupilo charlatão a mesma atitude que tiveram com ministros como Abraham Weintraub e Ernesto Araújo, que foram apenas mais diretos e constantes nas aberrações que expressavam. Nenhum dos dois tinha a grife do “Chicago boy”. Guedes não está no governo para “melhorar” Bolsonaro; está lá porque o completa no que há de pior.