O rock nunca errou tanto quanto no caso dos irmãos músicos que resolveram unir o poderio financeiro a práticas nada éticas com a saúde das pessoas

Doctor Pheabes. Provavelmente você nunca ouvir falar. É uma banda de rock. Provavelmente não valeria a pena ouvir tocar – e depois deste texto talvez você, se compor a esmagadora minoria que já tomou contato com o som, talvez gostaria de “desescutar”, se isso fosse possível.

A Doctor Pheabes, na verdade, é (ou era) mais do que uma banda. Era também empresária e mecenas de si mesma, a ponto de ser a primeira atração nacional confirmada em eventos como Rock in Rio e Lollapalooza. Mais do que isso, os quatro caras do grupo abriram shows em turnês de megabandas como Guns n’Roses, Black Sabbath e Rolling Stones. Como? Ora, “pagando bem, que mal tem?”, diria alguém.

Os irmãos roqueiros Fernando e Eduardo Parrillo (ao centro), sócios da Prevent Senior: levando a “meritocracia particular” da Doctor Pheabes longe demais | Foto: Divulgação

É que dois dos integrantes, os irmãos Eduardo e Fernando Parrillo, são também donos da Prevent Senior, a empresa da área de saúde que nesta semana teve suas vísceras mais espúrias expostas na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga a condução da pandemia no País pela advogada Bruna Morato, representante de 12 médicos que trabalhavam para a operadora de hospitais e seguros de saúde.

Em 2017, numa entrevista ao portal G1 sobre a Doctor Pheabes, Eduardo, que é o CEO da Prevent Senior, disse assim como uma explicação para o “fenômeno” de um grupo desconhecido abrir shows de tal porte: “Se você acha que abrimos só porque patrocinamos, é uma verdade. Tá bom. Qual banda deveria estar no nosso lugar?”, questionou, num acesso de uma particular meritocracia.

E seguiu ele: “As pessoas confundem: ‘Ah, eles [estão nos festivais só porque] são patrocinadores’. Sim. E por isso conhecemos o cara [produtor]. Mas ele não iria botar uma banda que vai fazer uma papelão lá em cima. Ele não é um idiota. Entre todas as bandas que poderiam abrir, vai colocar a que o agrada mais. Como qualquer pessoa faria. Mas não é legal tirar o mérito da banda.”

Da cena do rock para o circo político. Do suposto talento dos Pheabes na música para a explícita má condução da Senior na pandemia. O cenário muda para o Congresso Nacional, o palco é a cúpula do Senado. Lá dentro, na sala da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia se desenrola uma coletânea de vídeos, uma música mórbida, funesta. Nada a ver com o som “metal” dos irmãos Parrillo e cia. Mas a melodia fúnebre do que passam na tela combina com os relatos que Bruna Morato faz aos senadores.

Uma das coisas mais estarrecedoras que ela relatou aos senadores foi uma das razões que fizeram a Prevent Senior ter sido tão entusiasta da adoção do kit Covid em larga escala: como gestora de um plano de saúde e tendo o discurso oficial do governo sobre o tratamento precoce como salvaguarda, seria financeiramente muito mais em conta para a empresa se antecipar às consultas médicas e a outros procedimentos dos eventuais pacientes e lhes entregar os medicamentos em mãos – com o “plus” de mostrar ainda uma atenção especial à clientela. Como a maior parte dos casos de Covid é de assintomáticos ou tem sintomas leves, a maioria dos pacientes se sentiria “medicado”, mesmo tomando uma panaceia.

Infelizmente, esse foi apenas um dos muitos relatos pavorosos que foram feitos naquela terça-feira pela advogada Bruna. Entre os demais estavam: a Prevent Senior deixou seus colaboradores – profissionais da saúde e administrativos – trabalhando contaminados pelo vírus e sem EPIs adequados; usou os pacientes como cobaias de seus experimentos com hidroxicloroquina e outros placebos; deixou gente morrer pra economizar com leito de UTI – pacientes internados em determinadas UTIs e cuja internação tivesse mais de 14 dias sofriam um procedimento de redução da oxigenação nos respiradores.

São coisas muito absurdas até mesmo para letras as mais soturnas do black metal ou do death metal, estilos de rock pesado que flertam com a morte e com o ocultismo em suas letras. A questão é que, por mais que se possa questionar o mau gosto (e aí isso vai de cada qual), essas bandas utilizam-se de uma retórica artística e não da prática do que cantam.

No caso da Doctor Pheabes, ao contrário, pelos relatos parecia haver até mesmo letras encomendadas para o trabalho nada ético da Prevent Senior. Bruna, no depoimento à CPI, contou que a banda compôs um hino para ser tocado em encontros da empresa, com os colaboradores colocando a mão no peito e cantando de forma solene. O repórter Guilherme Balza, do canal GloboNews, obteve uma gravação do suposto hino. Eis a letra:

Nascemos para trilhar
Um caminho a desbravar
Nascemos para viver
De lutas até morrer

E juntos nós estaremos
E juntos nós venceremos
Com espadas e com canhões

Nós somos os guardiões
Nós somos os guardiões
Nós somos os guardiões

O meu lema é teu escudo
Tanto faz na luz ou no escuro
E (inaudível) você e como eu

De nunca dizer adeus
E juntos nós estaremos
E juntos nós venceremos
Com espadas e com canhões

Nós somos os guardiões
Nós somos os guardiões
Nós somos os guardiões
Nós somos os guardiões

Pela má qualidade da letra, percebe-se que a indicação para os grandes shows de rock deva ter sido, no mínimo, exagerada. Talvez essa seria a “contrapartida” da Doctor Pheabes pelos patrocínios concedidos pela Prevent Senior. O que, por sua vez, seria, com certeza, um dos piores investimentos que uma empresa poderia fazer. Pelo lado da banda… uma mamata, não?