Vencer é diferente de triunfar. A forma com que a vitória se dá deveria levar a alguma reflexão, mas não é exatamente o que acontece. No futebol, a ilusão de que um placar apertado sobre um adversário limitado foi algo bom simplesmente porque se alcançou o objetivo (no caso, os três pontos) pode levar a um grande revés logo à frente.

Da mesma forma ocorre nas guerras. O caso exemplar vem do general Pirro, que reinava no Épiro, região sudoeste dos Bálcãs e noroeste da Grécia, entre os séculos 4 e 3 a.C., quando então se meteu a enfrentar os romanos na própria Península Itálica, atendendo ao apelo dos comandantes de algumas cidades do sul da “bota”. Não só se meteu como também venceu, mas a um preço muito custoso.

Tinha uma força militar com 3 mil cavaleiros, 2 mil arqueiros, 500 fundeiros, 20 mil infantes e 19 elefantes de guerra – o uso desses, aliás, uma inovação tecnológica à época. Um contingente de respeito, mesmo quando se colocava como parâmetro o exército rival – embora o Império Romano ainda estivesse a uns dois séculos de se formar.

Na primeira batalha, de Heracleia, Pirro perdeu milhares de homens (registros falam em baixas de 4 mil a 13 mil) –, assim como ocorreu aos romanos. Ficou já então meio ressabiado, sabedor de suas limitações de reposição. Na segunda, a Batalha de Ásculo, venceu de forma ainda mais apertada, perdendo mais 3,5 mil soldados. Um sucesso amargo, que, segundo o historiador grego Plutarco, teria tido a seguinte avaliação do realista general: “Se formos vitoriosos em mais uma batalha contra os romanos, estaremos acabados”. E assim se cunhou o termo “vitória de Pirro” ou “vitória pírrica”, em que o ganho vem a um custo tão alto que praticamente anula o que seria seu lado positivo.

Ao contrário do realista e exímio comandante – Pirro era admirado por Aníbal, a lenda militar de Cartago, que o comparava a Alexandre Magno –, às vezes não se tem noção do quão diminuta pode ser uma conquista se for colocado o longo prazo em perspectiva.

Que a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) contra um governante ao mesmo tempo tão rejeitado e tão popular como Jair Bolsonaro (PL) traria sequelas era algo previsível. Existe a rejeição crônica, causada pela marca tatuada pela Lava Jato em seu (altamente contestável) combate à corrupção, algo que afeta tanto o presidente eleito como seu partido – Lula continua a ser o “ladrão”, embora tenham ficado provados os erros processuais, ao mesmo tempo em que faltaram ajuntamento de provas efetivas contra ele por seus acusadores, além de uma condução julgada parcial dos processos por parte do então juiz Sergio Moro.

Noves fora os 580 dias de cadeia por uma sentença que, como todas as demais, virou nulidade, há então esse outro prejuízo concreto ao petista: a nódoa de corrupto que ostenta por causa da perseguição jurídica (“lawfare”) que sofreu não vai ser desmanchada diante de boa parte da população. Pelo contrário: não tem ele, Lula, nem o direito de desabafar contra seu algoz, hoje eleito senador do Paraná pelo União Brasil, depois de uma trajetória errática que só reafirmou as desconfianças que existiam contra sua idoneidade e ética e na qual o fato de ter sido ministro do governante eleito com sua contribuição direta ao prender o favorito é só um dos itens do currículo.

Na terça-feira, 21, Lula soltou um palavrão ao desabafar contra Moro em uma entrevista – concedida para o site Brasil 247, claramente apoiador das pautas de esquerda –, em que, perguntado se estava ficou “tudo bem” durante o período na prisão, retrucou dizendo que, naqueles dias, achava que só ficaria bem quando ferrasse (o termo realmente expresso é o sinônimo chulo desse verbo) o então juiz. Foi claramente algo dito sobre o que sentia no passado, mas que também totalmente desnecessário de ser revelado no momento em que ocupa novamente a cadeira presidencial.

Já causaria algum mal-estar essa expressão entre a parlapatice e o descuido, e seria, por si só, alguns dias de munição gratuita para a tropa de extrema-direita no Congresso. Mas a cereja no bolo da lambança viria no dia seguinte: o anúncio da prisão, pela Polícia Federal e outras forças de segurança, de membros da maior facção criminosa do País, cujo plano era promover tentar matar autoridades. Entre elas, o nome de maior destaque, segundo as investigações era o de… Sergio Moro.

Lula ganhou também porque tinha para si o certificado de ter governado o País por oito anos sem jamais sair do transcurso das regras democráticas

Foi o que bastou para que os microfones dos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, bem como as redes sociais, fossem invadidas pela militância bolsonarista para denunciar a “conspiração” que uniria o PT e a tal facção contra os representantes da direita. E aqui não adianta racionalizar o processo, atentando para o fato de que foi no governo de Lula que seu desafeto teve a vida provavelmente salva pela ação da inteligência das polícias: o que fica é a ligação da “descoberta” – na verdade, uma operação com data marcada para ocorrer já há algumas semanas – à declaração imprudente, impensada e infeliz do presidente a jornalistas amigos, no dia anterior. Lula, como já havia feito algumas vezes durante a campanha, viu a casca de banana do outro lado da rua e fez questão de atravessar a pista para escorregar nela. Ao chamar depois a operação policial de mais uma “armação” de Moro, fez questão de atravessar a rua de novo, jogar outra casca de banana e ficar pulando em cima.

Mas o que teria a ver esse desvario momentâneo do petista-mor com a odisseia de Pirro? É que o momento ainda é de muita instabilidade não só para o governo, mas para a democracia. Todos os mais conscientes dos rumos da política dentro do âmbito de suas instituições sabem como o Brasil esteve a poucos passos de cair no fundo do poço de uma anomia durante os anos Bolsonaro. Uma reeleição dele, que desse mais quatro anos de poder a sua trupe e tropa, seria algo de consequências inimagináveis, mas certamente devastadoras.

Lula ganhou também porque tinha para si o certificado de ter governado o País por oito anos sem jamais sair do transcurso das regras democráticas, ainda que com escorregões aqui e ali – como no arroubo de querer expulsar o jornalista estadunidense Larry Rohter por ter ele “exagerado” na descrição de hábitos etílicos do presidente – algo anos-luz aquém das sandices que Bolsonaro promoveu.

Em torno do petista se formou o “exército” da frente ampla, que teve como maior oficial o vice Geraldo Alckmin (PSB), seu ex-rival político, e na reta final, como reforço importante para a causa, a combativa Simone Tebet (MDB).

Vencer a máquina do poder e derrotar pela primeira vez um candidato à reeleição ao Planalto não foi fácil. Mas gerir o País tendo contra si um povo que tentou derrubar um governo com uma semana de exercício é matar um leão por dia. E declarações infelizes são como gastar seus elefantes de guerra.

Passados alguns meses de distância do pleito, fica mais nítido que Lula era o único general capaz de derrotar a mastodôntica campanha eleitoral bolsonarista. Mas não, a democracia ainda não venceu a guerra. Há batalhas e batalhas, e muito o que fazer – e muito a se cuidar – para não ver tudo se transformar em um cenário pírrico.