O céu se fecha em noite sombria, cortinas se balançam ao vento e um pesadelo pessoal do ex-presidente Jair Bolsonaro renasce sob um nome não tão velho, mas já muito conhecido do Brasil e do mundo: Covid-19. Comecemos a história do nascituro tormento de Bolsonaro em outubro de 2021, quando seis meses após sua abertura, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, criada para investigar apontadas ações equivocadas e/ou criminosas e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia do coronavírus, além do colapso da saúde no estado do Amazonas no começo daquele ano, foi encerrada com a leitura de seu relatório final.

Na ocasião, a versão final do parecer, com 1,3 mil páginas, revelou ter identificado a “existência de um gabinete paralelo, a intenção de imunizar a população por meio da contaminação natural, a priorização de um tratamento precoce sem amparo científico de eficácia” e o “desestímulo ao uso de medidas não farmacológicas”, como o uso de máscaras. “Paralelamente, houve deliberado atraso na aquisição de imunizantes, em evidente descaso com a vida das pessoas. Com esse comportamento o governo federal, que tinha o dever legal de agir, assentiu com a morte de brasileiras e brasileiros”, como consta no relatório final aprovado por maioria dos votos no Parlamento.

Com a conclusão de que infrações e omissões haviam sido cometidas pelo governo federal e seu núcleo na condução da pandemia, a CPI recomendou o indiciamento de quase 80 pessoas, entre elas, o então presidente Jair Bolsonaro, e encaminhou o relatório para os devidos órgãos e instituições responsáveis pelos próximos passos, entre eles, a Procuradoria-Geral da República (PGR). Contudo, Augusto Aras, então PGR, recusou os pedidos da CPI para abertura de inquérito contra os nomes apontados pelo relatório. O ato do procurador foi um golpe duro e certeiro no estômago de parlamentares que passaram meses a fio debruçados sobre evidências e depoimentos que corroboraram, segundo o relatório final, uma condução não só fracassada, mas criminosa da pandemia por parte do chefe do Executivo federal.

O pedido por parte da PGR, na época, para o arquivamento de cinco das sete apurações instauradas no Supremo Tribunal Federal (STF) contra Bolsonaro a partir do relatório final da CPI da Covid parece ter sido a gota d’água para alguns dos senadores mais insatisfeitos, que enviaram ao STF uma petição para que Aras e a vice-procuradora, Lindôra Araújo, fossem investigados por possível prevaricação, chegando a dizer que eles tinham uma postura “claramente política e sorrateira”.

“A atuação da gestão Aras após quase 3 anos deixa evidente o modus operandi da blindagem: abertura de procedimentos preliminares para não envolver a Polícia Federal, que participaria, se houvesse inquérito aberto, e, após o caso esfriar, pedir para arquivar. A conduta sorrateira, sempre ganhando tempo para, após, arquivar, sem JAMAIS (sic) ter sequer aberto um inquérito, deve ser combatida”, dizia o texto assinado por senadores como Omar Aziz, Otto Alencar, Renan Calheiros e Tasso Jereissati e enviado ao Supremo.

O tempo passou, a mobilização também. Aras não foi investigado, mas substituído, e mais de dois anos depois, a rocha no caminho de Bolsonaro, que acabou virando uma pedrinha chutada para longe, voltou a incomodar. Na última semana, senadores que participaram da CPI da Pandemia (alguns mesmos que assinaram a peça contra Aras) se reuniram com o atual procurador-geral da República, Paulo Gonet, que assumiu o posto após indicação do presidente Lula da Silva, e pediram o desarquivamento dos indiciamentos contra Jair Bolsonaro.

De acordo com Randolfe Rodrigues, que esteve no encontro, Gonet sinalizou que poderá analisar com minúcia as conclusões dos meses de investigações da CPI. “Saímos daqui convencidos de que não terá impunidade para os mais de 700 mil brasileiros que morreram”, afirmou. Quando se leva em consideração a mensagem implícita na fala do congressista, de que a PGR pode, agora sob “nova direção”, mudar seu entendimento sobre a responsabilidade do ex-presidente na pandemia, é possível dizer que as noites de sono de Bolsonaro devem voltar a ser inquietas e atormentadas pelos fantasmas da Covid-19.

A tempestade perfeita para este cenário já está armada. Vale lembrar que, neste mês de março, a Polícia Federal (PF) indiciou o ex-chefe do Executivo federal e seu ex-ajudante de ordens, tenente-coronel Mauro Cid (que, inclusive, voltou a ser preso após ordem do ministro Alexandre de Moraes) no âmbito da investigação que apura a suspeita de fraude na carteira de vacinação contra a Covid de Bolsonaro. Segundo a PF, tanto Jair quanto Cid cometeram os crimes de associação criminosa e inserção de dados falsos em sistema de informação.

Com o indiciamento, a PF chegou a relacionar o suposto esquema de fraude no cartão de vacina do ex-presidente com a investigação que o coloca como pivô de outra trama em investigação, a de tentativa de golpe de Estado. Conforme a polícia, Bolsonaro e seus aliados podem ter emitido os cartões fraudados para que, após a tentativa inicial de golpe, tivessem à disposição os documentos necessários para entrada e permanência em um país estrangeiro enquanto aguardavam o desenrolar da apontada tentativa de tomada à força do poder no Brasil.

Se essa relação ou mesmo o teor do indiciamento são legítimos ou não, é o que a Justiça vai responder. Não obstante, o fato é que Jair Bolsonaro se viu no centro de inúmeras polêmicas, e até investigações, antes, durante e depois de seu mandato como presidente do Brasil, e conseguiu, aparentemente, superar todas elas – até agora. É justamente a condução no combate (ou a possível falta dele) a um inimigo microscópico, um vírus, constantemente minimizado pelo político, que pode causar sua queda. E que tremenda ironia seria.