Expectativa de fim do governo Bolsonaro causa “estouro da boiada” contra o meio ambiente

12 junho 2022 às 00h00

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Sob pressão do mundo, que quer compromisso do Brasil com a preservação, Congresso acelera leis que vão na contramão da sustentabilidade

O desaparecimento do indigenista e servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai) Bruno Araújo Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips na Amazônia, mais do que uma tragédia humana de repercussão mundial, não deixa de ser uma infeliz metáfora dos tempos de desrespeito total à questão ambiental por parte do governo federal.
A maneira com que o presidente Jair Bolsonaro (PL), na terça-feira, 7, comentou o fato diz muito sobre a falta de qualquer traço de empatia já característica de sua personalidade: “Duas pessoas apenas num barco, numa região daquela, completamente selvagem, é uma aventura que não é recomendável que se faça. Tudo pode acontecer. Pode ser um acidente, pode ser que eles tenham sido executados. A gente espera e pede a Deus para que sejam encontrados brevemente.”
Sim, foi isto mesmo que você leu: o presidente da República responsabiliza um dos indigenistas mais conceituados do País e um jornalista investigativo com um livro em andamento sobre a Amazônia pelo incidente que os acometeu enquanto cumpriam seu dever profissional. Como se fossem dois aventureiros sem noção que teriam caído de paraquedas no meio da floresta.
Uma postura bem diferente, por exemplo, da que ele próprio teve em relação aos dois policiais rodoviários mortos no Ceará após um andarilho tomar a pistola de um deles. Mas não seria uma “aventura” pouco “recomendável”, pois, agentes de segurança abordarem um homem cujas atitudes haviam parado o tráfego em uma rodovia das mais movimentadas, senhor presidente? Não, apenas cumpriram seu dever de ofício, infelizmente sendo vítimas de uma fatalidade, naquele caso.
A reação de Bolsonaro é previsível, no entanto. Que ninguém espere dele alguma resposta diferente quando for falar de quem luta por causas que considere abomináveis – e, nesse sentido, a defesa do meio ambiente está no topo das rejeições do presidente. Mais: dentro do tema ambiental, a defesa dos direitos dos povos indígenas ocupa lugar de primazia em seu ódio.
Prova disso é ele sempre avisar que não vai cumprir uma eventual decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a questão do marco temporal, se o julgamento for favorável à demarcação das terras indígenas – o entendimento atual é de que só eles teriam direito às terras que estivessem sobre sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Ao fim da mesma terça-feira, 7, o presidente, parecendo em estado de surto, voltou a falar sobre esse tema, usando como pretexto a decisão da 2ª turma do Supremo de manter a cassação do deputado bolsonarista Fernando Francischini (UB-PR). Do nada, sem ser provocado, disparou: “Se o novo marco temporal for aprovado, além de uma área do tamanho da região Sudeste, já demarcada como terra indígena, teremos outra área do tamanho da região Sul. Acabou a economia brasileira, o agronegócio. Acabou a nossa garantia alimentar. Acabou o Brasil. O que eu faço se aprovar o marco temporal? Tenho duas opções. Entrego a chave para o ministro do Supremo ou digo: ‘Não vou cumprir’.”
A “boiadinha”
Mais do que palavras, que já são muito nocivas para a democracia e o futuro sustentável do Brasil e perante as comunidades internacionais, o que preocupa neste antigoverno Bolsonaro são os projetos em andamento que aniquilam a legislação ambiental. Alguns deles estão em tramitação neste momento no Congresso e seu conjunto está sendo chamado de “boiadinha”, em alusão à sugestão de Ricardo Salles, então titular da pasta do Meio Ambiente, na reunião de Bolsonaro com os ministros em abril de 2020 – exposta em maio, por decisão do STF, após denúncia de Sergio Moro, que saíra do Ministério da Justiça. “Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”, propôs o antiministro.
A “boiadinha” está entre a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. São pelo menos oito projetos:
- PL do Veneno: projeto de lei que autoriza o registro de novos agrotóxicos e reduz o poder do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e da Agência Nacional de Vigilância (Anvisa) sobre o tema.
- Parcelamento das dívidas do Ibama: amplia mecanismos para renegociação de dívidas junto ao órgão.
- Autocontrole sanitário: autoriza a contratação de empresas privadas pelos próprios produtores para realizar a fiscalização sanitária da atividade agropecuária, retirando a responsabilidade do Estado.
- Anistia ao desmatamento: é uma alteração no Código Florestal que vai aumentar em quatro anos o prazo de regularização para áreas em que houve desmatamento ilegal, estabelecendo pagamento de compensação.
- Construção de reservatórios d’água em APPs: outra alteração no Código Florestal, para possibilitar a construção de reservatórios de água em áreas de preservação permanente (APPs).
- Linhas de transmissão em terras indígenas: facilita obras de linhas de transmissão de energia elétrica em terras indígenas, dando à Presidência o poder de decidir, por decreto, as linhas que sejam de interesse da União – ainda que preveja consulta às comunidades afetadas.
- Isenção para a silvicultura: a atividade não pague mais a taxa por ação poluidora ao Ibama, verba usada, por exemplo, para ações de fiscalização
- Estrada do Colono: permite a Estrada do Colono cortando ao meio o Parque do Iguaçu, no Paraná, bem como autoriza a construção de “estradas-parque” nas mais de 2,3 mil unidades de conservação do País.
A maioria dessas matérias polêmicas estão no Senado, que, por articulação da bancada do agronegócio, está acelerando sua tramitação com manobras regimentais, ainda que o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), diga que tudo está correndo “sem atropelo”.
Está cada vez mais óbvia a tática: mesmo entre os políticos da base governista, há o sentimento de que Bolsonaro não será reeleito. O clima de fim de feira já altera os ânimos e leva os interessados nas pautas, prevendo as maiores dificuldades em um eventual governo Lula (PT), a querer “fazer a xepa”. O que se vê nesse pacote do agro é exatamente um atropelo dos ritos executado pela bancada do boi.
Isso foi confirmado à “Folha de S.Paulo” pelo senador Jean Paul Prates (PT-RN). “A visão é que o governo vai acabar, então grupos pendurados nele, naqueles conceitos mais radicais, como os antiambientalistas, estão tentando passar as propostas por baixo do Parlamento, acreditando que os parlamentares já estão com foco nas eleições.”
Mas pode ser pior ainda: a “boiadinha” seria o balão de ensaio para o que já está sendo chamado de “pacote da destruição” – uma legislação que abriria as portas das terras indígenas, das reservas ambientais e das unidades de conservação para facilitar o que puder naquilo que hoje é ilegal em termos de mineração (garimpos clandestinos), licenciamentos ambientais (madeireiros e fazendeiros em atividade irregular) e posse de terras (grilagem).
Se durante os últimos três anos Jair Bolsonaro colocou o Brasil na contramão do que quer e precisa o planeta, agora, em processo de autodestruição e em conluio com o que já é chamado de “ogronegócio”, está afundando o pé no acelerador rumo ao desastre.