Os militantes de extrema direita, assim como costumava fazer o finado Olavo de Carvalho, atribuem a Lênin a frase “acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é”. Como boa parte do que vem do grupo, essa também é uma informação falsa: o líder comunista soviético nunca disse isso e a versão mais provável é de que seja uma tradução para o português a partir de uma cartilha da ultradireita “The Tatics of Desinformers” (algo como “As Táticas dos ‘Desinformadores'”).

Olavo pode ser considerado o pai da guerra cultural no Brasil. Com sua morte, no início de 2021, deixou a seu séquito convertido um legado de intolerância, negacionismo e táticas de guerrilha por meio das redes sociais. Sua importância é tanta para o crescimento do radicalismo reacionário no País que mesmo os que nunca leram um de seus livros nem viram uma de suas aulas onde posava com a autoridade de um guru praticam seus preceitos. Se você nunca foi insultado ao tentar expor argumentos sobre política na internet, talvez seja porque não tenha ainda encontrado um olavista pela frente.

O objetivo de vida de Olavo era destruir o que chamava de “marxismo cultural”, uma miscelânea de leis e costumes os quais ele via como “comunismo”. Muito antes de Jair Bolsonaro chegar à Presidência, as mentes reacionárias já se alimentavam das conspiracionices e faziam delas o que lhes dessem na telha – ou viessem aos olhos. Em novembro de 2016, Rosangela Elisabeth Muller ganhou fama imediata como meme por ver, em um painel de um evento cuja arte havia sido elaborada com a fusão das bandeiras de Brasil e Japão, a infiltração do comunismo no País. Estava claro para ela ali: a transformação do círculo azul das cores pátrias no vermelho socialista. O que havia, apenas, era apenas a referência ao Sol Nascente, símbolo nipônico consagrado na flâmula oficial. A peça publicitária, na verdade, integrava a decoração que homenageava o centenário da imigração japonesa para o Brasil. Um exemplo clássico do que é o pânico moral aplicado ao comunismo.

Mas, contextualizando a cena, o horizonte de entendimento de todo o processo é ampliado. Rosangela gravou sua “denúncia” em 16 de novembro de 2016. Naquele dia, ela estava no Congresso Nacional integrando um grupo de cerca de 500 pessoas que invadiram o plenário da Câmara dos Deputados, inclusive quebrando uma vidraça (isso lembra algo?).

Os manifestantes pediam intervenção militar e ocuparam a mesa diretora da Casa gritando “general aqui!”. No corpo, camisetas com dizeres como “Intervenção do povo já!” (e isso, lembra algo?). Era dia de sessão e deputados fugiram, assustados.

Na época, o presidente era Michel Temer (MDB) e um tal Jair Bolsonaro tinha então de 6% a 9% das intenções de voto. As manifestações pró-ditadura e que festejavam o AI-5 eram vistas até então como aberrações inofensivas. Na verdade, embebidos de uma democracia fake (ou, ao menos, bastante imperfeita e que assim continua, teimando em não sucumbir de vez, apesar de parecer cada vez mais combalida com golpes e “golpes” vindos de toda parte), os brasileiros mais moderados achavam que aquilo ali não iria muito longe. Dois anos depois, o sujeito que em abril daquele ano tinha reverenciado o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra durante seu voto contra a torturada Dilma Rousseff estava eleito presidente da República.

Na cadeira principal do Planalto, em um de seus primeiros discursos, Bolsonaro disse que governaria “sem viés ideológico”. Uma declaração que conceitualmente transita entre a idiotia e a impossibilidade. Cada ser humano leva consigo uma forma particular de ver o mundo constituída por suas vivências, crenças e hábitos. Analfabeto ou doutor em Harvard, ambos têm ideologia, ainda que um tenha consciência disso e o outro, não.

Com noção do que estava dizendo ou não – provavelmente a segunda alternativa –, o “mito” queria na verdade dizer que ideologia era “coisa de esquerda”. Quando falava que não teria viés ideológico em seu governo, portanto, estava afastando aproximação com tudo aquilo que considerava “pauta ideológica”. Por isso, durante quatro anos não houve demarcação de terras indígenas; não houve discussão de leis que garantissem direitos a trabalhadores; não houve projetos para a proteção das minorias; não houve incremento de medidas protetivas para mulheres ameaçadas, pessoas carentes ou em situação de vulnerabilidade; e, entre tantas outras coisas, não houve combate ao garimpo ilegal na Amazônia nem ao desmatamento no Cerrado.

Há em curso uma plena disputa de narrativas, em que o sectarismo da extrema direita joga tudo que não lhe caia bem na conta do “comunismo”

Enfim, não houve nada que passasse perto de ser tachado como “coisa de esquerdista”. Decorreram-se os quatro anos de delírio, tendo pegado ainda uma pandemia regada a negacionismo pelo meio, e do lado de cá desta mal traçada linha do tempo, os mesmos moderados que minimizaram o avanço do fenômeno do absurdo agora se mostravam aliviados com a eleição de alguém que talvez não gostassem nem gostem. Porém, torçam o nariz ou não, o petista Luiz Inácio Lula da Silva é, sim, um democrata à moda antiga.

O fato é que as sequelas do bolsonarismo estão aí. Chamar de “sequelas”, aliás, é ser por demais otimista. O que há em curso é uma plena disputa de narrativas, em que o sectarismo característico da extrema direita joga tudo que não lhe caia bem na conta do “comunismo”. Isso vale tanto para uma vacina emergencial, a que passam a chamar de “experimento”, como para uma abordagem socioeconômica feita em uma prova de acesso à universidade em que pesquisadores citados questionam o modelo do agronegócio. Da mesma forma, questionar excesso da polícia também se tornou “coisa de comunista” ou de “esquerdopata”.

As grandes questões, no mundo “sem viés ideológico” do bolsonarista, são resolvidas de forma simples ou rápida ou as duas coisas. Por isso, a solução para acabar com a criminalidade é cada um ter sua arma; para educar os filhos com os valores da família, está aí o homeschooling; e para que todos tenham chance de alcançar a prosperidade, basta juntar livre mercado e meritocracia.

A extrema direita e seus princípios atraem os incautos que lhes são suscetíveis justamente por conta da facilidade de se identificar. Ora, meninos vestem azul e meninas vestem rosa, e está tudo resolvido; meninos têm “pipiu” e meninas têm “pepeca” e isso basta como educação sexual. Discutir homofobia em sala de aula é absurdo, pelo suposto “risco” de o filho, sabendo sobre o assunto, virar gay; falar de violência contra a mulher é lacração para subjugar os homens.

Como num cabo de guerra infinito, a polarização degringolou a tal ponto que hoje qualquer ato que pode ser rotulado. Quem mata no trânsito certamente “apertou 22”; quem defende a legalização da maconha é “eleitor do Lule”; criticar o abuso das militâncias identitaristas é ser “minion enrustido”; escrever textão nas redes é ser “mimizento”. Não se pode nem mesmo ter um pet em paz: quem cria pitbull é de direita; quem gosta de gatos é “comunista” – não sem ressaltar que ser “pai de pet” é coisa de quem fala “todes”.

Se o bloco reacionário é a verdadeira insurreição dos dias atuais, como diz o filósofo Vladimir Safatle na entrevista da semana desta edição, está cada vez mais provado que estão dispostos a não dar trégua aos inimigos. Que Palestina e Israel tenham mais sorte, porque, por aqui, não há cenário de paz para a guerra que incitam os herdeiros do finado Olavo.