Despersonalidade do Ano: Marcelo Queiroga

31 dezembro 2021 às 09h18

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O ministro da Saúde se desfez como médico e terminou 2021 jogando para a plateia negacionista, vendendo a alma por sucesso político

Uma das maiores características do governo de Jair Bolsonaro (PL) é piorar quem nele entra. Dos generais aos (poucos) intelectuais, o que há por parte de quem ganha um cargo é uma subversão dos próprios valores para se adequar à cartilha ao mesmo tempo limitada e autoritária do presidente da República.
Não há alternativa: ou faz o que Bolsonaro quer, do jeito que ele quer, ou está fora. Isso vale para todas as áreas, mas, no meio de uma pandemia com 620 mil mortes registradas – fora as subnotificações –, o chefe do governo optou desde cedo por ir de encontro à ciência. Resultado, na prática: depois de caírem dois médicos do Ministério da Saúde – Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, este com menos de um mês à frente da pasta –, assumiu o comando um general de três estrelas com especialização em logística.
Eduardo Pazuello ficou de maio de 2020 a março de 2021 no cargo, período em que, enquanto se multiplicavam os óbitos à casa das centenas de milhares, também apareciam vários escândalos por incompetência, improbidade e mau uso do erário. A falta de oxigênio em Manaus, a adoção oficial ao kit Covid e a fabricação de cloroquina pelo Exército a mando do Planalto são só os exemplos mais gritantes.
Muito desgastado, Pazuello tinha de deixar o cargo. E Bolsonaro, então, resolveu que colocaria um médico no lugar, o que só parecia uma boa notícia até a página dois. Afinal, teria uma série de profissionais da saúde e também parceiros ideológicos para a vaga, dentro ou fora da política, como o deputado, ex-ministro e dublê de vidente Osmar Terra (MDB) e a oncologista e imunologista Nise Yamaguchi. Porém, assim o preço político seria alto demais. Chamou para conversar a respeitada intensivista Ludhmila Hajjar, mas logo viu que ela era séria demais e cheia de escrúpulos para o que ele pretendia.
E, para o que pretendia, o escolhido Marcelo Queiroga caiu como uma luva. Afinal, não vinha para o governo um médico qualquer, mas o presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Logo no primeiro contato com os jornalistas, um diferencial: o novo ministro era adepto das máscaras. O discurso, no entanto, já começou bem político, tentando separar o comportamento e o confronto aberto do presidente contra as medidas sanitárias do que seriam as atribuições de sua pasta.
De “peixe ensaboado” no início, com o passar dos meses Queiroga foi tomando a forma e o conteúdo de seu chefe. As entrevistas já não tinham a mesma cordialidade e a postura foi se adequando ao melhor – se pode se dizer assim – estilo Bolsonaro: respostas ríspidas e o gestual de quem está sempre irritável, que se materializou nos dois dedos médios endereçados a manifestantes contra o governo na saída de um restaurante onde a comitiva brasileira estava jantando, durante a Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em setembro.
A mosca azul mostrar seus efeitos no modo de agir pessoal do ministro era algo preocupante. Mas, mais ainda, ela já afetava duramente seu trabalho. O discurso “libertário de conveniência” do presidente levou Queiroga a ir contra a obrigatoriedade do uso de máscaras, contra a adoção do passaporte sanitário e, por último, a fazer o que estivesse sob seu poder para protelar a vacinação de crianças. Novo ápice veio quando repetiu uma máxima de Bolsonaro: “Às vezes é melhor perder a vida do que perder a liberdade.” O contexto era a adoção da exigência do comprovante vacinal para entrada no País, em meio ao surgimento de uma variante mais contagiosa, a ômicron.
Fechando o ano, Queiroga atingiu o grau máximo de desfaçatez no uso político do próprio cargo. O episódio final do ano foi a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a vacinação de crianças de 5 a 11 anos. Vale a pena repassar como foi a mudança de Queiroga sobre o tema durante os meses.
Contra a vacina infantil
Em agosto, ele disse que era preciso “construir essa evidência científica” [à necessidade de vacinar crianças contra a Covid-19]. “Não podemos aplicar vacinas sem ter base científica para tal”, completou. No mês seguinte, a base científica apareceu: a Pfizer anunciou que seu imunizante era seguro para crianças. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro suspendia (medida revista dias depois) a aplicação da vacina em adolescentes de 12 a 17 anos.
Após o FDA (órgão regulador de medicamentos nos Estados Unidos) aprovar a aplicação da Pfizer em crianças, em novembro, Queiroga concedeu uma entrevista, no dia 11 de novembro, na qual jogava no colo da Anvisa a análise e a decisão sobre a inclusão da vacina no Brasil. “Uma vez aprovado [o pedido da Pfizer], para qualquer faixa etária, se considera [a decisão] dentro do programa nacional de imunizações”, declarou. Dias depois, também em entrevista, o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Rodrigo Cruz, confirmou que o Brasil já teria doses disponíveis para iniciar a vacinação infantil, caso a Anvisa a aprovasse.
No dia 16 de dezembro, a Anvisa autorizou o imunizante, já de forma definitiva. Para corroborar sua própria posição sobre a vacina infantil, mesmo que isso não fosse necessário, a agência convidou outras entidades médicas, técnicas e científicas para dar seus pareceres. Confirmaram o ok à imunização, então, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Fisiologia, a Sociedade Brasileira de Infectologia, a Sociedade Brasileira de Imunologia, a Sociedade Brasileira de Pediatria e a Sociedade Brasileira de Imunizações.
Claro, a novidade não agradou a Bolsonaro, que pressionou pela divulgação dos nomes dos técnicos responsáveis, em um processo de intimidação que, mesmo antes da decisão, já fazia os servidores da agência sofrerem ameaças de morte.
O papel de Queiroga, a partir de então, ficou explícito: fazer o jogo do presidente e impedir ou protelar ao máximo a vacinação, indo contra toda a sociedade científica e as entidade médicas. Mudando totalmente sua atitude, mesmo após a Anvisa dar sinal verde com todos esses avais (repetindo, que não seriam necessários, mas atestaram a avaliação) no dia seguinte o ministro disse ser “arriscado” e que precisaria de outras avaliações. Então, a Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização da Covid-19 (CTAI), do próprio ministério, em reunião de emergência, também deu parecer favorável à vacina, de forma unânime.
Não foi suficiente para Queiroga. Em nova ação protelatória, ele resolveu abrir uma consulta pública para saber o sentimento da população em relação à vacinação de crianças. Seria mais ou menos como, na década de 90, o governo federal ter elaborado um questionário público sobre se preservativos seriam uma medida segura contra o HIV, para então decidir se os distribuiria ou não. Por ironia, o formulário da consulta lembra outro do mesmo governo, o TratCov, por meio do qual se recomendava o kit Covid até para bebês recém-nascidos.
Pelo conjunto da obra, se alguém criasse o prêmio Despersonalidade do Ano, o troféu de 2021 teria de ser entregue pessoalmente a Marcelo Queiroga. Ninguém se desconstruiu tanto como profissional da saúde a serviço da política negacionista, a ponto de rasgar o próprio diploma. Vendendo a alma, ele pode garantir com sobra, pelos votos dos negacionistas, uma cadeira na Câmara dos Deputados. Mas é, em relação ao juramento de Hipócrates, um ex-médico.
O tempo é senhor. Cargos e mandatos passam. Quando terminar a pandemia – e tudo leva a crer, apesar da variante ômicron, que isso vá acontecer em 2022, ainda que o vírus circule de forma endêmica pelo mundo –, o que foi dito e feito entrará para a história. Marcelo Queiroga vai carregar para sempre o peso de ter sido um médico que, no cargo de ministro, depois de mais de 600 mil cadáveres produzidos pela Covid-19 no Brasil, declarou que viver era menos importante do que perder a liberdade. Uma declaração que talvez caísse muito bem não para um médico, mas para um general.