Desonestidade do ministro da Saúde ganha formato de monólogo com transmissão ao vivo
10 janeiro 2021 às 00h00

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General especialista em logística, Eduardo Pazuello trata Pfizer com desdém por oferecer 8 milhões de doses ao Brasil depois de ser ignorada pelo governo federal

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Depois de 1 hora, 8 minutos e 31 segundos de live transmitida ao vivo pelo Facebook e pelo YouTube na noite de quinta-feira, 7, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), ao lado do ministro da Saúde, o general especialista em logística Eduardo Pazuello, disse sobre o Brasil ter superado 200 mil vítimas da Covid-19 desde o início da pandemia, em março de 2020, que “lamenta”, mas que “a vida continua”.
“A gente espera volta à normalidade o mais rapidamente possível. No mais, pessoal, a vida continua. A gente lamenta que hoje estamos batendo aí as 200 mil mortes. Muitas dessas mortes com Covid, outras de Covid, não temos uma linha de corte no tocante a isso daí. Mas a vida continua. A gente lamenta profundamente. Eu estou preocupado com a minha mãe que tem 93 anos de idade. Se ela contrair o vírus vai ter dificuldade pela sua idade. Mas temos que enfrentar isso daí.”
Em tom professoral de quem dá bronca na turma que não presta atenção, o ministro da Saúde gastou uma hora dos jornalistas e da população brasileira na tarde de quinta-feira, 7, horas antes da live semanal de Bolsonaro, para dizer que é vítima da desinformação ou do problema de comunicação no Brasil. Ao falar das mais de 200 mil mortes, Pazuello destacou os mais de 7 milhões de brasileiros recuperados da Covid-19 durante a pandemia.
Outros dados relevantes
Claro que não coube espaço no monólogo do ministro, que se indagou e respondeu durante a transmissão do que deveria ser uma entrevista, para falar sobre a quantidade de casos suspeitos, o tamanho da subnotificação de pacientes e mortos não confirmados pela doença e a ocupação de leitos de UTI para tratamento da Covid-19. “É uma guerra. E nós precisamos usar todas as armas necessárias para poder vencer”, declarou Pazuello cinco meses depois de se recusar a negociar com os laboratórios Pfizer e BioNTech a compra de 70 milhões de doses da vacina produzida por norte-americanos e alemães, a primeira a ser aplicada no mundo em dezembro.
E continua o discurso de defesa da saúde, ao menos no papel: “É o momento que a saúde não pode ter bandeiras, não pode ter partido, não pode ter ideologia”. O titular da Saúde, que foi apresentado como especialista em logística, já deixou mais de 7 milhões de testes RT-PCR perderem o prazo de validade parados no Aeroporto de Guarulhos. Precisou de uma autorização do fabricante da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para estender o prazo de uso dos exames para começar a enviar a Estados e municípios.
No site do Ministério da Saúde, na parte de perguntas frequentes, informa que o vírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19, não é transmitido pelo ar. Mas Pazuello defendeu na quinta-feira que a guerra contra a pandemia não pode ter bandeira ou ideologia. Então por que mentir para a população sobre a forma de transmissão da doença que já matou mais de 200 mil brasileiros em menos de dez meses? “Nós estamos falando de brasileiros, meus parentes e seus parentes”, se dirigiu aos jornalistas presentes o ministro.
Tratamento precoce?
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Horas depois, na live presidencial, defendeu o tratamento precoce com medicamentos sem eficácia no combate à Covid-19. E deixou o presidente propagar informações falsas sobre a redução da carga viral do Sars-CoV-2 com a utilização de remédios não indicados para casos de Covid-19. Também incentivou as repetidas afirmações de Jair Bolsonaro, que insistiu em enfatizar que a vacinação não será obrigatória no Brasil. Se isso não é adotar um tom ideológico para discutir uma questão sanitária e técnica de extrema urgência, o que mais seria, Pazuello?
“É nesses momentos mais difíceis que nós temos que ter resiliência, que temos que acordar de manhã e ir trabalhar.” Já no início da não entrevista monólogo, o ministro da Saúde critica o que chama de “incompreensão de periódicos” sobre o trabalho realizado pela pasta. O problema é que o ministério deixou passar todas as oportunidades que teve para trabalhar. Lembremos que não faz muito tempo que o seu titular, o mesmo Pazuello, questionou: “Para que essa ansiedade, essa angústia?“. Vale recordar que o tal Plano Nacional de Imunização, anunciado em 16 de dezembro de 2020, só foi apresentado porque o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o cronograma fosse entregue em 48 horas.
Pazuello confessou que já passaram quatro equipes de comunicação pelo Ministério da Saúde desde que o general especialista em logística, que não conhecia o Sistema Único de Saúde (SUS), assumiu a pasta no dia 15 de maio de 2020. “[A Medida Provisória] Nos permite fazer contratação de vacinas e outros insumos antes mesmo de estar concluído o seu registro na Anvisa.” Mas o mesmo Ministério da Saúde firmou acordo de compra e transferência de tecnologia da vacina da Universidade de Oxford em parceria com o laboratório AstraZeneca em junho de 2020. Alguma coisa não bate na informação do ministro.
Equívoco do governo

A verdade é que o governo se equivocou ao apostar em apenas uma vacina contra a Covid-19 e se deu mal ao ver a imunização começar em outros países com doses da Pfizer/BioNTech e da Moderna enquanto os resultados da fase três da Oxford/AstraZeneca eram contestados por inconsistências na metodologia diferente adotada em cada um dos grupos de voluntários estudados. Mas o ministro da Saúde prefere mentir durante o monólogo de quinta-feira: “Eu não podia fazer nenhuma contratação que não houvesse incorporação anterior no Sistema Único de Saúde para poder comprar”.
Logo depois, Pazuello acaba por deixar escapar que o problema, na verdade, eram os decretos de calamidade que perderam valor legal no dia 31 de dezembro de 2020. O que ocorreu de fato foi que o governo federal e o Ministério da Saúde não agiram enquanto era tempo para comprar as doses necessárias de doses de outras vacinas para iniciar ainda em dezembro de 2020 a vacinação dos grupos prioritários.
Agora a previsão de Pazuello, se o cronograma – sem data acertada de início – for cumprido, é de concluir em 12 meses a imunização das fases um, dois, três e prioritária da aplicação das doses no Brasil. O que significa que parte dos grupos de risco da pandemia no País ainda poderão aguardar as duas ou uma das dores até o primeiro trimestre de 2022. O principal ponto, de verdade, da Medida Provisória número 1.026, de 6 de janeiro de 2021, se dá na prorrogação da dispensa de licitação para compra emergencial de insumos e imunizantes após o fim do vigor dos decretos de calamidade pública com o encerramento do ano de 2020.
No mesmo dia em que o governo de São Paulo apresentou dados genéricos, que também despertaram suspeita de cientistas e jornalistas – queriam dados completos da fase três da pesquisa de desenvolvimento da vacina CoronaVac, parceria do Instituto Butantan com o laboratório chinês Sinovac Biotech -, o Ministério da Saúde resolveu reagir para tentar apresentar algo. E Pazuello disse que a União era “o grande cliente do Butantan, que é uma instituição do Estado”. O ministro afirmou que a pasta negocia a conclusão de um contrato com o instituto paulista para a compra de 46 milhões de doses da CoronaVac.
Compra desautorizada
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No final de outubro, Pazuello anunciou a compra de 46 milhões de doses da vacina fabricada pelo Instituto Butantan em parceria com a chinesa Sinovac, mas foi desautorizado pelo presidente Jair Bolsonaro em resposta a um seguidor nas redes sociais. Foi quando o titular do ministério voltou ao seu lugar, de ocupante do cargo para obedecer às ordens do chefe do Executivo, até mesmo quando Bolsonaro decide contrariar os pesquisadores, a ciência e a medicina. Sem qualquer reclamação ou sinal de contrariedade.
Mas citou, no monólogo transmitido ao vivo, que o memorando de intenção de adquirir as doses da CoronaVac de São Paulo já estava assinado desde outubro de 2020. O que resta saber é se Pazuello contrariou Bolsonaro ou se o presidente apenas jogou para a galera em uma tentativa de agradar seus apoiadores quando chamava a vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan de “vachina”, “vacina chinesa” ou “vacina do Doria”.
“Participamos da fase três de testes do Butantan por intermédio da Fiocruz”, descreveu o ministro. Só que, ao apresentar o Plano Nacional de Imunização, a CoronaVac não constava entre as doses que seriam utilizadas para imunizar os grupos prioritários nas quatro primeiras fases da vacinação no Brasil a partir de fevereiro ou março.
Notícia distorcida?
Depois de comprovar as informações atravessadas e diferentes dados a cada novo comunicado oficial do Ministério da Saúde, Pazuello reclamou que é difícil informar, “porque a gente repete, repete, repete e a notícia vai distorcida”. Para começar a esclarecer a fala do ministro, é preciso que o general que ocupa o cargo desde maio decida se o brasileiro não precisa de demonstrar ansiedade para ser vacinado logo, se o presidente autoriza ou não a compra de doses da CoronaVac e a partir de quando a vacinação sairá do papel.
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Uma coisa mudou. Na live presidencial do mesmo dia, Bolsonaro ficou calado ao ouvir Pazuello citar que o governo federal irá utilizar doses da CoronaVac na vacinação da população pelo SUS. “O que eu estou dizendo para os senhores e senhoras já falei n vezes. A primeira pergunta quando a gente abre para reportagem é ‘o ministério vai comprar a vacina do Butantan?’, “por que o ministério não vai comprar a vacina do Butantan?’. Pô! Acabei de explicar que estamos comprando há meses.”
É preciso explicar que só agora a vacina do Butantan surgiu oficialmente, depois do anúncio frustrado por Bolsonaro em outubro, como parte do Plano Nacional de Imunização na boca de Pazuello. E que as perguntas foram citadas pelo ministro, que se respondeu em seguida. E agora alegou que só poderia comprar com a MP publicada, “incluir no SUS e depois pagar”. E se irritou com os fotógrafos: “Cada vez que eu aponto o dedo nego tira foto, mas é o jeito de falar. É impressionante, né? Quer tirar foto? [Pazuello levanta o dedo] Ó! Toma. Chato”.
Fotojornalismo é ação, movimento, expressão. Ficamos esperando um gesto, pode ser um dedo, pode ser um coçar de cabeça, pode ser entrando e saindo da sala. De novo: Expressão, movimento. Foto 3×4 estática serve para o RG, você pode fazer banquinha da esquina com fundo neutro pic.twitter.com/36v5E5y1SO
— Gabriela Biló (@gabrielabilo1) January 8, 2021
Sem data definida
Depois de falar em compra de 46 milhões de doses da CoronaVac, Pazuello começa a defender o negócio firmado com a Oxford e AstraZeneca em junho, quando ficou acertado o pagamento de R$ 1,9 bilhão para transferência de tecnologia e fabricação das doses no Brasil. Em seguida, citou que o Brasil entrou no consórcio da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Covax Facility. Mas pesquisadores brasileiros alertaram que o País demorou demais a aderir e ficou no fim da fila.
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As falas de Pazuello, em tom professoral, davam a impressão de que o Brasil começaria a vacinação na sexta-feira, 8. Mas o governo brasileiro ainda não sabe quando chegarão as 2 milhões de doses importadas da vacina de Oxford/AstraZeneca fabricadas pelo instituto Serum. O ministro insiste que é preciso ser noticiado o que é dito.
“É fundamental que os meios de comunicação, a nossa mídia, os senhores e as senhoras comuniquem o fato. Me mostrem quando foi que um brasileiro ou a população brasileira delegou aos redatores ou a qualquer um dos senhores a interpretação dos fatos. Me mostrem. Eu não fiz. Nós não queremos a interpretação dos fatos dos senhores. Nós não queremos tendência ideológica ou de bandeira”, ordenou o ministro que não conseguiu comprar seringas e agulhas para utilizar no Plano Nacional de Imunização contra a Covid-19 na virada do ano.
Incompetência escancarada
Inconformado, o ministro da Saúde continuou sua aula sobre o que não entende, assim como não sabia o que era o SUS. “Eu quero assistir à televisão e ver a notícia do fato que aconteceu. Deixem a interpretação para o povo brasileiro. Deixem a interpretação para cada um de nós. Os senhores não têm essa delegação”, reclamou o ministro da Saúde que adotou com uma das primeiras medidas à frente da pasta não mais divulgar o número total de mortes causadas pela Covid-19 no Brasil.
Pazuello reclama sem entender como funciona o jornalismo. Deve ser complicado, depois de participar de uma live presidencial com perguntas amigáveis de jornalistas que fazem um trabalho de puxadinho da Secretaria de Comunicação do governo federal durante a transmissão ter que encarar o trabalho técnico de quem confronta declarações de autoridades com dados, documentos, números e outras informações.
A verdade dos fatos, para Pazuello, é aquilo que coloca o Ministério da Saúde bem na fita. Mas o que valoriza e melhora a imagem da pasta é eficiência na prestação do serviço, comprar vacina, proteger a população, liderar o combate à pandemia. Isso, até aqui, o especialista em logística do Exército não fez. Nem passou perto.
Mas na prática…
Só que o exemplo do Palácio do Planalto é sempre o pior possível, como a decretação de sigilo dos cartões de vacinação do presidente da República. Isso mesmo. Por até 100 anos, ninguém pode ter acesso por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) para descobrir se Bolsonaro, que faz campanha diária contra a vacinação para diminuir os casos de Covid-19 no Brasil, será ou não imunizado. Virou segredo de Estado. Digno de república bananeira.
Renata Lo Prete jantando passando pela sua timeline. pic.twitter.com/9P7WPr8n1e
— Mateus Oliveira (@mateusno) January 8, 2021
Mas paga o preço por ter feito pouco caso das negociações com outras vacinas na espera da produção de doses da Oxford/AstraZeneca pela Fiocruz antes de qualquer outro imunizante. Não contava com imprevistos nas fases de teste, nem investiu para valer em pesquisas nacionais para o desenvolvimentos de vacinas com tecnologia 100% brasileiras. O custo de sucatear a universidade pública uma hora cobra seu preço. Sucateamento esse que foi agravado no governo Bolsonaro.
Quem não tem muito o que apresentar de concreto se irrita para tentar criar narrativas e culpar a imprensa por não fazer o trabalho que é do governo federal e do Ministério da Saúde, não de jornalistas. Ainda mais depois de 17 dias de silêncio durante as férias do presidente Jair Bolsonaro em meio à maior pandemia do século que tem a comprovação em dados confirmados, inclusive do próprio Ministério da Saúde, do aumento de casos e mortes pela Covid-19 no Brasil no final de dezembro e início de janeiro.
Emoção?
“Peço perdão aí pela palavra um pouco mais emocionada, um pouco mais direta. Mas acredito que o objetivo foi apenas transmitir a ideia como ela é exatamente.” Tudo bem, ministro. Pode começar a ser sincero e pedir desculpas aos familiares de mais de 185 mil brasileiros que perderam a vida para a Covid-19 durante a sua gestão à frente do Ministério da Saúde, em menos de oito meses no cargo. Sem contar os 7.703.580 infectados a mais – até o fechamento desta edição – desde a sua chegada ao posto de titular da pasta. Como o sr. afirmou, é preciso tratar as informações com honestidade. Porque o resultado do seu trabalho nós temos a prestação de contas diariamente no total de enterros.
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