Desconfie de político que doa salário para caridade
19 março 2023 às 00h40
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Na segunda-feira, 6, ao fazer pronunciamento a grandes empresários na Associação Comercial de São Paulo (ACSP), o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (pP-AL), deu a senha, no jargão da política, ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre o quão “complexa” – para dizer uma palavra republicana – será a negociação para votar as pautas de seu interesse no Congresso.
Representando o Legislativo federal, Lira ali falava com a autoridade de quem teve 90% dos votos (464 de 513 possíveis) ao buscar sua reeleição ao comando da Casa dos deputados. Deixando claro que Lula ainda não tem como enfrentar nem mesmo “matérias de maioria simples, quanto mais de quórum constitucional”, arrematou sua declaração da seguinte forma: “A figura da presidência da Câmara é a salvaguarda institucional de um ambiente de conversa sempre de uma maneira muito transparente.”
Em uma palavra apenas, é a hora de “negociar” com os deputados. E o que tem a ver esse verbo com o título deste artigo? Tudo, infelizmente – e infelizmente principalmente para quem acredita que a política é um ambiente onde predominam disputas de ideias em prol do interesse coletivo.
Seria bom se assim fosse, e é o que de fato deveria ser. Mas ainda há um caminho muito longo para os atores da democracia brasileira entenderem a importância e a responsabilidade únicas, dentro do contexto histórico, de estar nos cargos que ocupam, eleitos como representantes da vontade popular.
Pelo contrário, políticos muitas vezes assumem o papel de atores no sentido mais denotativo possível do termo: fingem ser determinados personagens – o arauto da moralidade, o perseguidor de “comunistas”, o engajado nas causas sociais, o estadista que quer o melhor para sua população, o valentão que prende e arrebenta. O teatro faz sentido, porque os diversos nichos eleitorais foram “treinados”, cada qual, para bater palmas para aquele determinado espetáculo que o político ator – e não ator político – produz.
A “realpolitik” tem muito de pragmática e pouquíssimo de idealista. Os que caem nela e não entendem essa condição sofrem bastante e geralmente duram pouco no mundo das urnas, gabinetes, plenários e tribunas. Um exemplo conhecido em Goiânia e o qual os grisalhos mais engajados se lembrarão foi o de Geraldo Pereira, o Geraldão da Bicicleta, que em 1985 se elegeu vereador de Goiânia pelo PT depois de uma campanha franciscana e envolvente, feita basicamente pedalando, especialmente pelo câmpus da Universidade Federal de Goiás (UFG) – onde já então trabalhava – e apoiado principalmente por estudantes e colegas. Chegou até a ser presidente da Câmara, mas, vendo aquele ambiente de dentro, se desiludiu completamente. Largou a política ao fim do mandato e seguiu como servidor público da UFG, dando vazão àquilo que o idealismo comportava: ser poeta.
Do imponente Senado à mais humilde casa legislativa do Brasil, haverá passado “Geraldões”, gente honrada que quis fazer acontecer o melhor para a população por meio de sua disponibilidade. Mas há, ainda em muito maior proporção, os que dedicam seu trabalho legislativo 24 horas em prol do próximo… mandato. São os profissionais da política, que se especializaram em ser na vida pública basicamente fazedores de negócios. Transformam o CPF em CNPJ e tornam seu gabinete a sede de uma empresa.
Baseando-se no salário possível de um político – os deputados federais receberão, a partir de 1º de abril, uma remuneração bruta de R$ 41,6 mil –, ninguém ficaria rico com a atividade. Claro, é um ótimo provento em comparação à população em geral, mas muito longe dos melhores cargos executivos na iniciativa privada e um montante que um dono de supermercado de médio porte na periferia pode alcançar perfeitamente como lucro mensal. Mas não se vê comerciante de bairro comprando mansão de R$ 6 milhões na parte mais nobre de Brasília ou em condomínio de luxo de qualquer cidade grande.
Portanto, se algum político chega a adquirir patrimônio nesse nível, não terá sido por meio de sua remuneração no cargo. Com o salário do parágrafo anterior, um deputado federal, que por algum milagre ou erro no sistema não tivesse nenhum desconto nesse valor bruto e dele não gastasse nenhum centavo, poderia comprar a mansão de R$ 6 milhões ao fim de 144 meses – ou exatamente ao fim de três mandatos, para uma conta mais eleitoral.
A não ser que seja um milionário excêntrico e benemérito, há alguma coisa a indicar para o velho lema de alerta: não existe almoço grátis
É por isso que deve ser vista com muita desconfiança qualquer promessa ou declaração de político abrindo mão de seu salário para, entre outras coisas, doar a uma instituição filantrópica. A não ser que seja um milionário excêntrico e benemérito, há alguma coisa a indicar para o velho lema de alerta: não existe almoço grátis.
E é importante, aqui, que o leitor tenha prestado atenção à adjetivação para o substantivo “milionário”: ser excêntrico e benemérito enquanto se é também político forma uma combinação nada usual. O mais comum é que milionários entrem de alguma maneira na política em busca do óbvio: estar no poder, compondo aquela massa que usa o cargo e o voto que tem para fins menos republicanos do que pessoais.
Há duas maneiras de um desses literalmente afortunados chegar lá: ou concorre diretamente investindo seu capital para ter uma “estrutura” capaz de conquistar um mandato; ou se joga como suplente de um forte candidato a senador, por exemplo, cuja campanha financie. Assim, saindo vitorioso nas urnas, ganhará tendo o posto ou mesmo sem assumi-lo – colocando o apadrinhado em sua zona próxima de influência, como braço extensor nos assuntos-chave.
É com esses homens públicos “pragmáticos” que Lula tem de lidar para governar. Não só ele, diga-se: da mesma forma, ocorre com governadores e prefeitos, de norte a sul do País. É o que se convencionou chamar, no Planalto, de “presidencialismo de coalizão”, o que não faz rima, mas traz significado semelhante à expressão “é dando que se recebe”.
Ainda vai levar uma data para que políticos virtuosos e não homens de negócio sejam maioria nos palácios e câmaras espalhados pelo Brasil. O que, por outro lado, não deve levar a população à descrença, mas exatamente ao movimento oposto: quanto mais próxima e mais conhecedora dos meandros do mundo do poder, maior será o atalho para bem separar o joio do trigo na vida pública.