Democracia à brasileira
25 julho 2021 às 00h00
COMPARTILHAR
Um compilado das últimas semanas do País onde é preciso reafirmar sempre que as instituições estão funcionando, ainda às vezes não pareça
Se todo dia, toda hora, precisa vir alguém das altas esferas dos Poderes, num revezamento desconcertante entre Legislativo, Judiciário e até do Executivo, para reforçar que “vamos, sim, ter eleições ano que vem”, a gente pode dizer que vive numa democracia, mas nem tanto assim.
Se o chefe da República diz impropérios sobre tudo e todos que acha que estão contra ele e, principalmente, ataca ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), disseminando mentiras para incriminá-los e jogar seus seguidores contra esses membros do outro Poder, e dizem que isso pode ser inserido dentro do que se chama “liberdade de expressão”, há pegadas de cavalo de Troia operando contra a democracia.
Se toda semana o mesmo se diz chefe supremo das Forças Armadas e que elas caminharão “sempre dentro das quatro linhas da Constituição”, é útil explicar a ele que isso é o mesmo que avisar que o sol vai nascer ou que a lei da gravidade vai agir – ou então precisamos repensar se essas “quatro linhas” não estão sendo sutilmente apagadas do campo democrático a cada fala do tipo.
Se essa mesma pessoa acorda certo dia e resolve dizer que as eleições precisam ter voto eletrônico “auditável” – sinônimo criado para “voto impresso”, já que auditáveis as urnas eletrônicas brasileiras sempre foram – e que sem isso “não temos eleições” em 2022 e não há pedido de abertura de um inquérito por parte da Procuradoria-Geral da República, há uma forte suspeita de que a engrenagem institucional está emperrando.
Se um presidente que já participou de nove eleições, sempre com sucesso, sendo que, em seis dessas obteve o mandato por meio de urnas eletrônicas, há algo que não está muito certo quando só agora, quando as pesquisas de intenção de voto não lhe são favoráveis, ele começa a dizer que a democracia não vai ocorrer dessa forma.
Se, depois de tudo isso, esse mesmo mandatário é convidado pelo chefe da Corte atacada dia sim, outro também, para uma reunião conjunta entre os líderes maiores de todos os Poderes, com a justificativa de restabelecer uma espécie de “alinhamento democrático”, é porque a democracia está tendo seu processo desalinhado por alguém, ou seja, que talvez esteja querendo estabelecer “limites diferentes” para as quatro linhas da Constituição.
Se um ministro da Defesa parte para o ataque e manda recados golpistas para o presidente de uma das Casas legislativas e isso é revelado e reafirmado por um dos jornais mais respeitados do País, mas tudo se resolve apenas com a negativa do que teria sido comunicado, não temos uma resolução, mas panos quentes na instabilidade enquanto a temperatura para a torragem do Estado de Direito se eleva.
Se um senador da República não pode fazer uma observação crítica sobre o lado ruim de certas instituições – ainda que exalte que o lado bom é maior e deveria estar envergonhado da “banda podre” – sem que seja ameaçado pelo que disse, e que a ameaça ocorra em nota oficial informando que não será aceito “qualquer ataque leviano às Instituições que defendem a democracia”, essa democracia tem mais fachada do que conteúdo.
Se está sendo necessária, semana após semana, a discussão sobre o papel institucional das Forças Armadas, talvez haja algum sério desarranjo no seio das instituições militares, a ponto de não conseguirem mais interpretar o que claramente está escrito e descrito sobre isso na Constituição Federal.
Se o presidente nacional de um partido que apoia o governo federal pode ficar solto nas redes sociais em personagem de velho senil enquanto faz discurso-teatro empunhando armas de fogo para atiçar seus seguidores sem que isso leve a qualquer reprimenda, seja do Ministério Público ou dos próprios correligionários, algo está falho na estrutura dos estatutos partidários.
Se o indicado pelo presidente para ocupar uma vaga no STF busca, desde antes de ter o nome aprovado, dar satisfação não à sociedade como um todo, mas a pastores e líderes de determinada religião ou crença, há um quê de teocrático no ar em que se deveriam soprar ventos constitucionais.
Se o procurador-geral da República usa seu cargo para fazer vistas grossas ou corpo mole para investigações que eventualmente possam afetar aquele que o nomeou para o cargo, é indício de que a autonomia e a independência que a Constituição lhe concede estão jogadas para escanteio e de que a União passa a ter dois advogados-gerais e a PGR, nenhum titular.
Se o presidente da Câmara abusa de seu poder monocrático diante de mais de uma centena de pedidos de impeachment enquanto crimes de responsabilidade são cometidos em sequência pelo alvo daquela mesma papelada que entulha sua mesa, há uma corrosão dos princípios democráticos em prol de interesses particulares.
Se parlamentares do chamado Centrão tomam conta do governo e, de uma forma tortuosa e maquiavélica, evitam que se conclua uma ameaça de golpe militar – ou um autogolpe –, sendo que não se submeter a esse grupo era uma das promessas de campanha do atual governante, há algo de muito distorcido no cenário político-institucional.
Se a deputada presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara tem o orgulho de registrar a seus seguidores no Twitter o encontro com uma deputada alemã dita “conservadora”, mas líder de um partido considerado neonazista em seu país e neta de um dos principais nomes do gabinete de Adolf Hitler, talvez seja necessário ressignificar o conceito de “conservadorismo” e de “Constituição e Justiça” em nossa democracia.
Se um diretor importante da Fundação Nacional do Índio (Funai) é, não um técnico da área, mas um militar do Exército sem formação específica, algo está errado na entidade – mas ainda muito mais errado quando ele usa seu cargo para ameaçar os indígenas que deveria proteger, de acordo com a lei que ele negligencia.
Se as assessorias das Polícias Militares necessitam frequentemente vir a público para justificar e/ou emitir notas oficiais, dizendo que ocorrências de abuso em abordagens policiais são “casos isolados”, é porque talvez os casos não sejam tão isolados assim e o Estado democrático de Direito requeira mais cuidados nos procedimentos.
Se você chegou até aqui nesta leitura e, depois de todos os parágrafos acima, continua achando que está tudo normal na democracia em que vive, é sintoma de que você já está adequadamente preparado para viver sem ela.