De volta à tutoria militar da República?

10 julho 2021 às 16h13

COMPARTILHAR
Enquanto em outros países as Forças Armadas fazem questão de pular fora do barco da política, por aqui ocorre exatamente o inverso
Em meados do ano passado, os Estados Unidos passavam pela grande onda de protestos causados pelo assassinato por asfixia de George Floyd por um policial de Minnesota. Vendo os eventos como oposição a seu governo, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, bateu de frente: no dia 1º de junho, mandou dispersar uma manifestação pacífica e, cercado pela segurança, atravessou a rua em frente à Casa Branca para posar com a Bíblia na entrada da Igreja de St. John. Ao seu lado estava o general Mark Milley, fotografado a seu lado naquela caminhada.
Durante o caos em meio à pandemia, Milley era ninguém menos que o chefe do Estado Maior dos Estados Unidos. O responsável pela maior máquina de guerra do planeta. Dias depois, Milley declarou publicamente que se deixar fotografar naquela situação tinha sido um erro dele, por dar a impressão de que as Forças Armadas estariam se envolvendo em questão política. Pediu desculpas à Nação e reiterou que os militares servem apenas à Constituição estadunidense e ninguém mais. Em outras palavras, Trump estava desautorizado a se aproveitar eleitoralmente daquele instante. Ponto final na polêmica.

Que pena o Brasil não poder dizer o mesmo das próprias Forças Armadas. O “gancho” para o texto, claro, foi a reação totalmente desconexa de nossos comandantes militares em relação à declaração de Omar Aziz (PSD-AM), presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga a atuação do governo diante da pandemia. Mas, diante da nota oficial emitida pelo Ministério da Defesa e os comandantes das três armas, a primeira coisa a se questionar é sobre nós mesmos: por que, depois de mais de 130 anos de República, ainda reverberamos com tanta intensidade declarações de militares sobre questões políticas?
Vamos contextualizar: em uma segunda fase de sua investigação, a CPI deixou em segundo plano o aprofundamento no mortal negacionismo do governo para explorar o submundo das negociatas dos tempos pandêmicos. Começou com o estouro do escândalo Covaxin. Pelo apurado a partir do depoimento de dois irmãos (deputado Luis Cláudio Miranda e servidor concursado do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda), a Covaxin é uma vacina que seria vendida ao governo federal por um valor mais alto do que o da Pfizer, embora com tecnologia inferior, ainda sem aprovação da Anvisa, contrato suspeito, atravessadores e indícios de tráfico de influência.
Veio depois a esquisitíssima história da compra de 400 milhões de doses da AstraZeneca por meio de um cabo da Polícia Militar mineira, Luiz Paulo Dominghetti. Ele se disse autorizado a negociar a vacina pela Davati, uma empresa dos EUA originária do ramo de material de construção. Em tudo isso estão envolvidos, direta ou indiretamente, pelo menos três homens das Forças Armadas: o general e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello; seu número 2 no ministério, coronel Élcio Franco; outro coronel, Marcelo Blanco; e o assessor do ministério Roberto Dias, este sargento da Aeronáutica. Os últimos dois, já demitidos. Também apareceu o nome de Glaucio Octaviano Guerra, coronel da reserva da Aeronáutica, que tem uma empresa de consultoria nos EUA e trocou mensagens com Dominghetti.
Em pouco mais de duas semanas, a CPI acabou descobrindo que, em cada operação menos republicana no Ministério da Saúde, estava ali o envolvimento de algum militar, fosse das Forças Armadas ou da PM. Durante a fala de Roberto Dias à CPI, ao fim do qual este saiu preso da sala da comissão, Omar Aziz fez o seguinte comentário-desabafo (sic) ao saber que o depoente era militar reformado:
“As Forças Armadas, os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados com algumas pessoas que hoje estão na mídia, porque fazia muito tempo, fazia muitos anos que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do Governo. Fazia muitos anos. Aliás, eu não tenho nem notícia disso na época da exceção que houve no Brasil, porque o Figueiredo morreu pobre, porque o Geisel morreu pobre, porque a gente conhecia… E eu estava, naquele momento, do outro lado, contra eles. Uma coisa de que a gente não os acusava era de corrupção, mas, agora, Força Aérea Brasileira, coronel Guerra, coronel Elcio, General Pazuello e haja envolvimento de militares!”
Uma declaração ponderada, aos olhos das pessoas comuns e de quem está acompanhando a rotina de descobertas escandalosas da CPI. Ora, Aziz chega a fazer uma defesa dos presidentes militares e da idoneidade moral de quem estava no poder naquele período de exceção. Mas a reação das Forças Armadas, puxadas pelo ministro da Defesa, general da reserva Braga Netto, foi estranhamente desproporcional:
“Brasília, 07/07/2021 – O Ministro de Estado da Defesa e os Comandantes da Marinha do Brasil, do Exército Brasileiro e da Força Aérea Brasileira repudiam veementemente as declarações do Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito, Senador Omar Aziz, no dia 07 de julho de 2021, desrespeitando as Forças Armadas e generalizando esquemas de corrupção.
Essa narrativa, afastada dos fatos, atinge as Forças Armadas de forma vil e leviana, tratando-se de uma acusação grave, infundada e, sobretudo, irresponsável.
A Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira são instituições pertencentes ao povo brasileiro e que gozam de elevada credibilidade junto à nossa sociedade conquistada ao longo dos séculos.
Por fim, as Forças Armadas do Brasil, ciosas de se constituírem fator essencial da estabilidade do País, pautam-se pela fiel observância da Lei e, acima de tudo, pelo equilíbrio, ponderação e comprometidas, desde o início da pandemia Covid-19, em preservar e salvar vidas.
As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às Instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro.”
A nota foi assinada por Netto e os comandantes das três Forças: general Paulo Sérgio Nogueira (Exército), almirante Almir Garnier Santos (Marinha) e tenente-brigadeiro-do-ar Carlos de Almeida Baptista Junior (Aeronáutica).
No dia anterior, segundo o Correio Braziliense, havia ocorrido uma reunião no Palácio do Planalto com Jair Bolsonaro (sem partido), em que os quatro signatários estavam presentes, além do advogado-geral da União e provável futuro ministro do STF, André Mendonça, o chefe do Gabinete Institucional, general Augusto Heleno e integrantes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Fontes ligadas aos militares dizem que entre alguns o mais incômodo na fala de Aziz foi a expressão “lado podre”. Será que temos, enfim, nesta terra, uma instituição que só tenha um lado bom? Ou seria o caso de não admitir que se toque em um tema “espinhoso”, à semelhança do que ocorreu com a Comissão da Verdade durante o governo Dilma Rousseff?
Curiosamente, se realmente “as Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às Instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”, por que não houve notas de seus comandos quando dos arroubos autoritários do presidente da República contra o Supremo Tribunal Federal, ou quando o mesmo Bolsonaro participou, fazendo discurso, de uma manifestação claramente golpista em frente a uma unidade militar, em Brasília?
Bolsonaro passou a atacar diária e frontalmente o ministro do STF Luis Roberto Barroso, como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), questionando sua idoneidade para a função. Qual foi a nota das Forças Armadas sobre o caso? E sobre sua declaração absurda de que, “se não houver eleições limpas” (com voto impresso), não teremos eleições no ano que vem?
Na sexta-feira, 9, mais um dedinho militar na política, em entrevista do brigadeiro e comandante da Aeronáutica, Carlos Almeida Baptista Junior ao jornal O Globo: “Homem armado não ameaça”; “É um alerta. Exatamente o que está escrito na nota. Nós não enviaremos 50 notas para ele (Omar Aziz). É apenas essa”; “Alguns valores como combate à corrupção, valores republicanos, foram a base da campanha do presidente Bolsonaro, que o elegeram. Para que a oposição tente voltar, ela tem de combater esses valores”. Tire o leitor as conclusões que quiser sobre essas frases, no contexto atual, vindo de um comandante militar.
A resposta à pergunta do terceiro parágrafo desta coluna, então, é simples: ao contrário das outras democracias, ainda nos submetemos, humilhados e impotentes, às declarações dos comandantes militares porque eles têm a força e, após 130 anos da República que eles implantaram na marra, até hoje, a despeito da Constituição, entendem que são pais dos filhos dela, os três Poderes. Entende-se muito do porquê os Estados Unidos são o que são e o Brasil é o que é, seja em termos de respeito à democracia, seja em termos de estrutura militar.