Na história brasileira existiram poucos eventos tão cinematográficos quanto a Operação Lava Jato: a forma com que se deram as ações da força-tarefa fizeram surgir personagens icônicos muito além dos protagonistas Deltan Dallagnol e Sergio Moro. Um exemplo é o Japonês da Federal, como ficou conhecido Newton Ishii – um policial de traços nipônicos, sempre de óculos escuros que, no princípio avassalador da operação, escoltava políticos, empresários e outras personalidades poderosas que eram alvos de mandados de prisão.

Mas a cinematografia da Lava Jato existe mesmo no sentido literal: o premiado José Padilha, que dirigiu os filmes “Tropa de Elite” (2007) e “Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é Outro” (2010) – este último uma película lavajatista antes da própria operação – ficou fascinado com a saga policial da vida real e a transformou em uma série, “O Mecanismo”, que teve duas temporadas nos anos de 2018 e 2019. Antes disso, em 2017, havia saído “Polícia Federal – A Lei é Para Todos”, dirigido por Marcelo Antunez e que teve o global Marcelo Serrado no papel de Sergio Moro, em um filme cujo subtítulo explicita sua área de concentração: “Os bastidores da Operação Lava Jato”.

Imagine como é achar, a partir de um posto de gasolina com equipamento para higienização de carros, o fio da meada de um esquema de corrupção monstruoso em um país de tamanho continental. Qualquer diretor hollywoodiano veria nisso um atraente e rentável enredo para um filme de ação cheio de intrigas, traições e reviravoltas. A própria população brasileira, em grandíssima parte e independentemente de lado ideológico – aliás, algo que era um item secundário nas discussões mais de dez anos atrás –, apoiava a operação, porque entendia que o combate à corrupção passara a ser primordial. Ora, até mesmo Dilma Rousseff (PT) havia feito sua própria “faxina” ministerial, tirando gente suspeita deixada no cargo pelo governo anterior, de seu correligionário e padrinho, Luiz Inácio Lula da Silva. Uma atitude, a propósito, a que o Congresso faria a então presidenta pagar caro.

O povo estava com ânsia de moralizar a política e isso já tinha aparecido nas jornadas de junho de 2013. A Lava Jato surgia no ano seguinte e a dupla Sergio Moro e Deltan Dallagnol tinha se metido nessa missão, não se sabe (provavelmente não) se imaginando esse efeito. Entretanto, claramente ambos não estavam preparados para a fama que alcançaram.

Como frequentemente ocorre com quem não está maduro para o peso da tarefa que recebe, deixaram o sucesso lhes subir à cabeça. Passaram a considerar prioritário não mais investigar, apurar, estudar os rumos do que estavam descobrindo, mas atender ao clamor da população (ou parte dela, notadamente de classe média), que, já enviesada, passou a ir às ruas com bonecos gigantes: os de vilões mostravam Dilma e Lula, de quem queriam a cabeça; já o super-herói inflado nas manifestações tinha a cara de Moro, o salvador da pátria que muitos já sonhavam ver na Presidência.

E a Operação Lava Jato, que fim levou? Não levou fim. Mas… quem te viu, quem te vê

Imagine agora, novamente, que alguém tenha deixado o País em maio de 2018 e se tornado uma espécie de ermitão, sem saber mais notícias do Brasil desde então. A pessoa resolve sair da caverna cinco anos depois e retornar às origens: depara com o juiz herói de multidões agora senador da República, depois de ter sido ministro do sujeito que ajudou a eleger ao prender o favorito da eleição; o procurador que liderou a Lava Jato e denunciou o presidente preso baseado em “convicções” agora é um ex-deputado federal, de mandato relâmpago cassado pela convicção unânime do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de que ele quis driblar a Lei da Ficha Limpa que tanto amava; e o presidente é ninguém menos que o ex-presidiário, que teve suas penas anuladas por suspeição do juiz depois de um vazamento, por um hacker do interior paulista, de conversas nada republicanas entre ele e a equipe de acusação. Entre os dois maios, quatro anos de desgoverno com um inepto de extrema direita à frente que receitou cloroquina e fez pouco caso de vacina no meio de uma pandemia que matou mais de 700 mil brasileiros.

E a Operação Lava Jato, que fim levou? Não levou fim. Mas… quem te viu, quem te vê. Depois da Vaza Jato, com as revelações que escancararam o conluio entre Moro e os procuradores da força-tarefa, o desgaste da investigação foi irrecuperável. Como consequência, veio também um sentimento geral de ceticismo em relação ao que fazer com a corrupção estrutural brasileira. Por isso, no fim, o que era remédio virou veneno.

Atualmente, há uma disputa de poder sobre o comando da megaoperação de outrora. Em fevereiro, a titularidade da 13ª Vara Federal, que, até se exonerar para se tornar ministro de Jair Bolsonaro, foi de Sergio Moro, foi entregue a Eduardo Fernando Appio, crítico do modo com que o agora senador julgou os processos da força-tarefa.

Appio não durou mais do que três meses no cargo. Foi afastado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) por 12 votos a 5, após representação do desembargador Marcelo Malucelli por má conduta disciplinar: o então juiz da 13ª Vara Federal teria ligado para o filho do magistrado, João Eduardo Barreto Malucelli, genro e ex-sócio de Moro em um escritório de advocacia, por um número bloqueado e com ameaças. A ligação foi gravada e o responsável pela chamada se identificou como Fernando Gonçalves Pinheiro, que seria servidor da área da saúde da Justiça Federal no TRF-4. Só que no tribunal não há ninguém com esse nome e uma perícia indicou que a voz provavelmente deve ser a de Appio.

Nesses três meses, Appio havia determinado sentenças opostas ao “espírito” da Lava Jato. Anulou condenações do ex-governador do Rio Sérgio Cabral e retirou a ordem de prisão para Rodrigo Tacla Duran – considerado uma bomba-relógio contra a dupla Moro-Dallagnol. Os colegas reagiram e, no TRF-4, suas decisões acabaram anuladas. Pior: havia sido descoberto que Appio usava, para entrar no sistema eletrônico do Judiciário, o login “LUL22” e ele admitiu que era uma forma de protestar contra a prisão do ex-presidente, que considerava irregular.

Em suma, o sucessor de Moro foi um Moro com sinal trocado, saindo fora das quatro linhas. Coração da Lava Jato, a Justiça Federal em sua 4ª Região, e mais ainda na 13ª Vara, precisa dar uma guinada de 180 graus para não dar razão à alcunha de “República de Curitiba”, uma comunidade autônoma do Judiciário, com uma regulação “free-style”, à margem do devido processo legal.

Em tempo: sobre Newton “Japonês da Federal” Ishii, seu simbolismo acabou juntamente com sua carreira policial, ao ser processado, julgado e condenado por facilitação de contrabando no posto de Foz do Iguaçu (PR), quando trabalhava na fronteira do Brasil com o Paraguai. Em seu perfil no LinkedIn, ele hoje se apresenta como “palestrante motivacional”, “palestrante sobre a consequência da Operação Lava Jato no Brasil, “palestrante na Lei do Compliance” e “consultor e assessor na Lei do Compliance”. Em 2022, tentou surfar no bolsonarismo, no que foi chamado de “mandato coletivo” com um policial civil, Fábio Nakashima, assinando a candidatura. Teve 2.765 irrisórios votos para a Câmara dos Deputados, pelo nanico Agir.

A Lava Jato não acabou como enredo cênico, mas deixou de ser um pretenso épico para tornar-se uma farsa.