Conteúdo da reunião ministerial de Bolsonaro é muito mais grave do que os apoiadores imaginam
24 maio 2020 às 00h00

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Declarações do presidente e ministros em 22 de abril no Palácio do Planalto têm de ser analisadas no contexto do inquérito, não de acordo com reação da militância

Houve muito barulho no final da tarde de sexta-feira, 22, sobre o conteúdo do vídeo – ou trechos – da reunião ministerial do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) realizada no Palácio do Planalto no dia 22 de abril, dois antes da saída do ex-juiz Sergio Moro do Ministério da Justiça e da Segurança Pública.
Quem parece ter comemorado bastante foi a base bolsonarista, que compartilhou trechos das imagens para reforçar propostas de campanha reproduzidas em tom agressivo durante a reunião.
A ideia passada nas redes sociais era a de que Bolsonaro teria saído vitorioso com a divulgação das quase duas horas do vídeo da reunião. Moro parecia, até então, derrotado na disputa de narrativas. Os 25% do eleitorado brasileiro concentrados na base fiel bolsonarista comemorava a virada de mesa contra o ex-ministro traidor.
O presidente aparecia em trechos cortados das imagens em tom agressivo, em falas recheadas de palavrões e defesa de Deus, da família, do armamento da população e da liberdade.
Leitura precipitada
Essa foi a leitura inicial que muita gente fez, inclusive quem nem apoiador de Bolsonaro é. Mas é preciso assistir a todo o vídeo da reunião de 22 de abril, tornada pública pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), para perceber que não é bem assim.
Basta lembrar que para um bolsonarista fiel qualquer afirmação do presidente, por mais absurda e mentirosa que seja, vira motivo para defesa incondicional. Então tanto faz se trataria-se de uma grande vitória ou apenas um jogo de palavras. Tudo vira bandeira para animar a torcida incansável.
Em uma de suas primeiras falas durante a reunião, Bolsonaro já cita a Polícia Federal como “PF” para reclamar que não consegue informação dos policiais federais, das Forças Armadas e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Conta que tentou interferir no Rio de Janeiro, mas não conseguiu. E que a partir daquela data tudo mudaria.
“Tenho a PF que não me dá informações. […] E me desculpem. Os serviços de informações nosso, todos, são uma vergonha! Uma vergonha! Que eu não sou informado. E não dá para trabalhar assim. Fica difícil. E por isso, vou interferir”, informa o presidente aos ministros pouco depois de 35 minutos de reunião.
Primeira citação aberta

Aqui é a primeira vez que Bolsonaro declara abertamente em interferência na Polícia Federal, como foi acusado por Moro na manhã de 24 de abril. Mesmo dia em que Bolsonaro exonerou Maurício Valeixo da direção-geral da PF.
No dia 4 de maio, o delegado Rolando Alexandre de Souza foi nomeado e empossado como novo diretor-geral da PF. No mesmo dia, Ronaldo tirou o delegado Carlos Henrique Oliveira da Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro.
O diretor da Abin, Alexandre Ramagem, que foi impedido pelo STF de assumir a direção-geral da PF, indicou Tácio Muzzi, da Superintendência da corporação no Amazonas, para o cargo vago no Rio. Por enquanto, o posto continua vago.
Confissão de dois crimes
Com aproximadamente 1 hora e 30 minutos de reunião, Bolsonaro volta a dizer que vai interferir na Polícia Federal do Rio, que desta vez ele chama de “segurança”, mesmo sem qualquer referência ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) nem olhar para o lado onde estava o ministro do GSI, general Augusto Heleno.
“Sistema de informações. O meu funciona. O meu particular funciona. Os que tem oficialmente desinforma. E voltando ao tema, prefiro não ter informação do que ser desinformado pelo sistema de informações que eu tenho.” Aqui, Bolsonaro não só volta a criticar a PF, a Abin e as Forças Armadas, como diz que conta com um esquema de repasse de informações pessoal. Se isso de fato existe, trata-se de um serviço paralelo, ilegal, o que caracterizaria a prática de dois crimes: organização criminosa e obstrução de Justiça.
E continua: “Já tentei trocar gente da segurança nossa oficialmente no Rio de Janeiro e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigos meus, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa. Vai trocar. Se não puder trocar, troca o chefe dele. Se não pode trocar o chefe dele, troca o ministro”.
Partes conhecidas

Talvez o impacto na narrativa tenha sido menor porque parte desse trecho já havia vazado dias antes da autorização da divulgação do vídeo pelo ministro Celso de Mello, d STF, que tornou a íntegra pública no inquérito. Mas a história está toda desenhada nos depoimentos de Sergio Moro, nos equívocos das declarações do general Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo, que foi intimado como testemunha da reunião.
Há sim uma suposta vantagem a Bolsonaro na investigação, mas não a falta de provas. E sim o fato de que a decisão de transformar o inquérito em denúncia está nas mãos do procurador-geral da República, Augusto Aras.
Quando for o momento de emitir um parecer, caso, ainda que contrarie a possibilidade de proteger o presidente, e entenda que Bolsonaro cometeu algum crime, a abertura do processo passa por votação de dois terços da Câmara dos Deputados. Seria o primeiro grande teste do apoio do Centrão, que ganhou cargos importantes no governo.
Mas vale lembrar que a história do sistema de informações particular de Bolsonaro se encaixa com o que foi revelado pelo empresário Paulo Marinho há sete dias em entrevista à Folha de S.Paulo. Marinho faz revelações sobre o repasse de informações de investigações policiais ainda não deflagradas à família Bolsonaro durante a campanha de 2018.
Declarações de Paulo Marinho
À jornalista Mônica Bergamo, o empresário que cedeu sua casa para funcionar como sede principal da campanha do presidente da República em 2018 revelou que o então deputado estadual e hoje senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) recebeu informações sigilosas de um policial federal sobre a Operação Furna da Onça.
O alerta ilegal teria ocorrido no dia 12 de outubro, entre o fim do primeiro turno e a campanha de segundo turno das eleições presidenciais. A orientação dos participantes do encontro, segundo Marinho, teria sido demitir a família Queiroz dos gabinetes dos Bolsonaro.
Entre os dias 14 e 16 de outubro de 2018, o ex-policial Fabrício Queiroz foi exonerado do cargo comissionados de Parlamentar 3 no gabinete de Flávio na Assembleia do Rio. No mesmo intervalo de dias, a filha de Queiroz, Nathália Melo de Queiroz, também perdeu o cargo de secretária parlamentar que ocupava no gabinete de Jair Bolsonaro.
As falar do presidente da República no dia 22 de abril sobre um sistema particular de informações aumenta o número de indícios investigados sobre possível interferência em ações e operações da PF no Rio de Janeiro pela família Bolsonaro. Na semana passada, Marinho prestou depoimento no inquerito 4.831, mas não quis comentar em entrevista o que teria dito à Polícia Federal.
Outros crimes
O que muita gente defendeu como garantia da “liberdade” nas palavras de Bolsonaro, não passa da repetida narrativa do presidente, que tenta transformar informações falsas em liberdade de expressão. Contrário a punições mais duras contra quem produz e compartilha fake news, Bolsonaro fez, nos primeiros 506 dias de governo, 1.062 declarações falsas ou distorcidas.
Fora o fato de o filho e deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) ser investigado na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News por um dos perfis responsáveis por disseminar informações falsas contra adversários políticos e instituições tenha sido acessado e publicações teriam sido feitas de computador do gabinete do parlamentar. O inquérito do STF que investiga a produção de ataques contra ministros do Supremo teria o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) como um dos alvos.
Fora as mentiras contadas quase que diariamente pelos Bolsonaro, o presidente incentiva armar a população contra “ditaduras” de prefeitos e governadores. Estaria aqui Jair Bolsonaro a imitar o falecido presidente venezuelano Hugo Chávez e seu sucessor, Nicolás Maduro, na tentativa de criar uma milícia, ou uma força paramilitar, para se manter no poder contra tudo e contra todos?
Milícia bolsonarista?

Teria sido esse o motivo de revogar portarias do Exército ilegalmente para acabar com o registro, rastreamento e monitoramento de armamento e munição de uso restrito às Forças Armadas? Tudo isso para construir uma narrativa contra o isolamento social. E pior, autorizar a população a usar a força para descumprir decretos estaduais e municipais de restrições de atividades.
Naquele 22 de abril, o Brasil tinha 45.757 casos confirmados da Covid-19 e 2.906 mortes. Infelizmente hoje temos 349.113 pessoas com o novo coronavírus testadas no País e 22.165 vítimas da doença. Na reunião, quando o então ministro da Saúde, Nelson Teich, falou sobre o medo da população com uma doença que afoga o sistema hospitalar, Bolsonaro tentou convencer o oncologista a tratar a Covid-19 como algo não tão grave, com pedido para destacar as comorbidades dos casos de óbito.
Em quase duas horas de reunião, foi o único momento que a pandemia foi abordada. Sem contar as declarações do ministro da Educação, Abraham Weintraub, definidas na decisão de Celso de Mello como “aparente crime contra a honra”. Também da titular ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que mandaria prender governadores e prefeitos.
“Passar a boiada”
E o incentivo do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, a tentar aprovar portarias e resoluções que modifiquem as regras de fiscalização e regularização em todas as pastas do governo sem a atenção da imprensa. Aqui cabe um destaque, que passou despercebido, para o fato de, em seguida a Salles, o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Gustavo Montezano, pede a palavra para dizer que concorda com o ministro do Meio Ambiente.
Montezano apoia a proposta de Salles para tentar “passar a boiada” sem dar transparência ou publicidade, chance de discussão no Legislativo ou questionamento no Judiciário, de portarias que modifiquem o marco regulatório em todas as pastas enquanto a imprensa foca grande parte de sua cobertura na pandemia da Covid-19.
Se alguém queria um indício de que as decisões do governo objetivam métodos antidemocráticos, aqui está um forte indício. Coitados, não é? Só querem evitar “pau no Judiciário”, como enfatizou Ricardo Salles. Para quem, como Weintraub, que, aos berros, defende que os ministros do STF tinham de ser presos, modificar a legislação brasileira por meio de medidas “infralegais” pode até parecer inofensivo. Mas é muito grave.
E o Guedes?

Antes de terminar, vale um destaque rápido, mesmo que não seja o foco do texto, a duas declarações do ministro da Economia, Paulo Guedes. A primeira é sobre colocar a granada no bolso do inimigo. É assim que Guedes se refere ao congelamento do salário dos servidores públicos.
E, ao citar os jovens aprendizes do País, o ministro sugeriu que o governo pague R$ 200 para que os adolescentes trabalhem para o Exército e na construção de rodovias. Cabe uma terceira lembrança a Guedes, quando diz que o Brasil ganha dinheiro ao salvar as grandes empresas e perde ao resgatar pequenos negócios.
Sem contar a forma como ministro da Economia trata o Banco do Brasil: “Tem que vender essa porra logo!”. Neste ponto, Bolsonaro parece mais inclinado ao Plano Pró-Brasil, de Braga Netto, e descarta possibilidade: “Só se discute [privatização]… só se fala isso em [20]23”. A ideia de privatizações de Guedes, com possível enxugamento da máquina pública federal, parece que não sairá do papel. Resta saber quando o ministro deixará o governo.
Auxílio problemático, isolamento furado
Para finalizar, vale uma lembrança a Pedro Duarte Guimarães, presidente da Caixa Econômica Federal. Enquanto o Brasil ainda em 9,7 milhões de pessoas que aguardam a análise do cadastro no auxílio emergencial, o homem à frente do banco federal disse que pegaria suas 15 armas de fogo e mataria ou morreria se alguém prendesse alguém de sua família.
A referência era à esposa do deputado federal e ex-nadador olímpico Luiz Lima (PSL-RJ). Milene Comini foi detida em Copacabana por descumprir ordens de isolamento da praia previstas nas medidas sanitárias adotadas no Rio. O crime está previsto no artigo 268 do Código Penal: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.
A pena prevista no artigo 268 do Código Penal determina detenção de um mês a um ano e pagamento de multa. O presidente da Caixa xinga bastante por entender que aquilo era absurdo. Esperar algo diferente de um governo que ficou duas horas reunidas e quase nada falou do combate à pandemia? Por falar nisso, o parlamentar, Milene e a filha informaram na semana passada que foram diagnosticados com Covid-19.