O ex-aliado do PT hoje combate o partido e seu pré-candidato, Lula, com quase todo o vigor que emprega contra Bolsonaro. Vem valendo a pena?

lustração de Candido Portinari para o livro “Dom Quixote Visto Pelos Artistas Brasileiros Portinari e Drummond”

Ter à frente um político como Ciro Gomes era tudo que o Brasil precisaria em um momento como o atual. Alguém que tem um projeto de desenvolvimento de um País, enquanto tudo parece tão sem rumo, ao sabor de guerras culturais e pregações meramente moralistas e nada práticas em relação ao bem-estar das pessoas.

Ter Ciro Gomes como ele próprio está se vendendo nesta pré-campanha, entretanto, não é possível. Todo o desatino e toda a verborragia que o pedetista tem protagonizado não faz sentido que não por convicção pessoal: se um marqueteiro tivesse algum poder maior sobre as ações de seu cliente, no caso, não deixaria que tantos erros crassos fossem cometidos.

Para o pedetista, desprezar o politicamente correto na disputa pelos votos não está sendo politicamente correto, para usar um trocadilho infame – embora seja também mais do que verdadeiro para avaliar as consequências de suas opções desde 2018. Voltemos então àquele período especialmente turbulento para tentar avançar no caso Ciro.

Com o ex-presidente Lula (PT) já preso e depois impossibilitado de concorrer ao Planalto por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), a eleição do fenômeno Jair Bolsonaro, então no PSL, se tornava uma possibilidade cada vez mais real. A facada de Adélio Bispo catalisou o avanço do “mito”. Naquele momento, vivendo o pior de seu inferno astral, o PT tinha duas opções: ou colocava seu plano B, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, na disputa, ou desistia de ter candidatura própria, abrindo caminho para que Ciro Gomes conquistasse a vaga no segundo turno.

O Partido dos Trabalhadores, com todas as suas contradições e pecados, ainda era – como continua sendo – o mais amado partido do Brasil. Não por coincidência, também é o mais odiado. Talvez por ser o único partido “de verdade” que exista no País, depois de o PSDB se destroçar. Em todos os casos, isso se deve a uma militância cativa, de base, que não nasceu do nada, mas como fruto de mais de 40 anos de construção e de disputa política. E agrega-se a essa estrutura sólida, por mais contestada que seja, outra figura igualmente sólida, contestada e já quarentona na vida pública: Luiz Inácio Lula da Silva.

Lula e PT nasceram um para o outro, talvez o outro tenha nascido do um, mas não são a mesma coisa. Juntos, são muito fortes. Se se separassem, ambos se manteriam ainda com bastante força, mas com mais dificuldades. O PT, sem Lula, talvez mais do que o inverso. Basta imaginar esta hipótese absurda: o que ocorreria se o ex-presidente, por alguma razão qualquer, saísse do partido e se candidatasse por uma sigla de centro, um MDB ou um PSD? O antipetismo continuaria “grudado” em Lula? Muitos cientistas políticos acreditam que não, e que parte dos que hoje reviram os olhos poderiam, sim, dar o voto ao eventual ex-petista.

Mas o que isso tem a ver com Ciro? É que, naquele momento do auge do antipetismo, tudo que o postulante do PDT gostaria era que Lula e o PT lhe dessem os próprios votos e a própria base, porque seria ele o único com chances reais de bater Bolsonaro no segundo turno – o que, na verdade, era corroborado por um momento específico das pesquisas, embora se pudesse deduzir, de uma forma subjetiva, que talvez ele realmente tivesse mais chance de vencer do que Haddad, dado o alto antipetismo daquela circunstância.

Mas o PT é o partido que é – seja lá o que isso significa para cada um, segundo suas convicções – por firmar suas escolhas. E bancou Haddad. E, em duas semanas, uma grande parte do que era voto em Lula virou voto em seu substituto. O suficiente para que Ciro fosse ultrapassado tranquilamente nas intenções de voto em apenas três semanas de campanha dos petistas para Haddad.

Ao cabo do primeiro turno, derrotado, o ex-ministro viajou para Paris, sem se pronunciar sobre o cenário de disputa entre Bolsonaro e Haddad. Só voltou às vésperas da ida às urnas, claramente ainda furioso com a derrota que o PT havia lhe imposto. Declarou voto contra Bolsonaro de uma forma tão estranha que alguns consideraram que a posição era mais neutra do que outra coisa.

Desde então, Ciro Gomes se a(pro)fundou no próprio antipetismo que foi criando e alimentando dia após dia desde aquele outubro de 2018. A ponto de, como nome alternativo à polarização atual, chegar a sugerir que Lula e Bolsonaro representariam faces da mesma moeda maligna. Para quem preza a democracia e observa o que fizeram cada um dos dois para e contra a estabilidade institucional do País em seus mandatos, num momento como o atual, não deveria haver espaço para dúvidas.

É da política atacar os adversários, faz parte da disputa de corações e mentes de qualquer período eleitoral. Mas faz parte, também, conduzir isso com algum método que demonstre eficácia. Desde quando Lula teve suas sentenças anuladas pelo STF e entrou como nome viável à disputa, Ciro nunca conseguiu chegar a dois dígitos nas pesquisas. Em 2018, da mesma forma, com o nome de Lula no páreo, o ex-governador cearense também não passou da primeira casa decimal.

Isso tem motivo: é que tanto Lula como Ciro correm no mesmo flanco, a centro-esquerda. E, embora seja o petista que tenha a fama de esquerdista radical, não foi o que demonstrou durante os oito anos em que governou, tempo em que fez a alegria de bancos e agropecuaristas e viveu às turras com parte do campo progressista, notadamente o da área ambiental, por conta de obras como a hidrelétrica de Belo Monte.

O Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), o programa de governo de Ciro Gomes, considerado por ele próprio seu grande trunfo diante de adversários “sem projeto para o País”, prevê a taxação de grandes fortunas, a retirada da autonomia do Banco Centro e a permanência da Petrobrás como estatal. Muito mais esquerdista do que ousaria o PT. Ao mesmo tempo, o pedetista joga cada vez mais peso na religiosidade e no conservadorismo do brasileiro médio. Posiciona-se contra o aborto, fala em maior rigor penal e se coloca como candidato anticorrupção. É a tentativa de abraçar o eleitorado antipetista que se sentiu órfão de candidato com o desempenho geral de Jair Bolsonaro no cargo de presidente e da desistência forçada de Sergio Moro após ser enquadrado pelo novo partido, o União Brasil.

Ciro Gomes atira para todos os lados, mas os alvos que quer acertar estão muito além de seu alcance. Acaba ficando um quê de personagem quixotesco que incutiu a si próprio uma missão a cumprir. O presidente do PDT, Carlos Lupi, até o momento, faz as vezes de Sancho Pança, mas quem manda não costuma ser escudeiro de quem não avança.

O personagem clássico da literatura de Cervantes é também um arquétipo dos utópicos. O mundo precisa deles, o mundo seria muito melhor com a vitória dos quixotes. Mas a janela para o sucesso eles na realpolitik é rara e muito estreita. E não é este o momento.

Uma reaproximação de Ciro com o PT, depois de tantos e tão fortes ataques à moral do partido do qual já foi aliado, seria ainda possível para esta eleição? Para Lula, que exigiu o ex-desafeto Geraldo Alckmin (PSB) como seu vice, certamente não haveria problemas; já o próprio pedetista assinalou um ponto de não retorno na relação. Mas política é a arte do possível e o Quixote de Sobral terá alguns meses para perceber que pode ser fundamental para evitar uma tempestade, em vez de atirar contra moinhos de vento.