Ver poderosos pagarem por crimes de colarinho branco fez o povo se sentir vingado e autoridades se tornaram justiceiras. A decisão da ministra do STF diz ao País que o dever de punir deve se dar pelo crivo do devido processo legal

Ao voltar atrás em seu voto no julgamento da suspeição do então juiz Sérgio Moro na condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no caso do tríplex do Guarujá (SP), a ministra Cármen Lúcia jogou a pá de cal definitiva sobre a Operação Lava Jato. E isso, acredite, é menos ruim do que se pensa.

Ainda que a magistrada tenha ressaltado, várias vezes em sua mudança de visão, que sua posição se referia àquele julgamento específico, a sentença de morte sobre a que havia sido considerada a maior força-tarefa da história brasileira contra a corrupção estava posta: afinal, Lula acabou por se tornar o personagem mais emblemático de toda a cinematográfica história de ascensão e queda de crimes financeiros e castigos políticos.

Iniciada em 2014, a partir da investigação de um esquema de lavagem de dinheiro envolvendo postos de combustíveis e lavanderias – daí seu nome – e que chegou ao doleiro Alberto Youssef, um velho conhecido de outra operação federal (Banestado, em 2008), a Lava Jato se agigantou. Foi desvelando uma série de crimes que reuniam como beneficiários políticos, empresários e executivos assaltando cofres públicos, em um caso que atingiria a maior empresa brasileira como a suposta “patrocinadora” da corrupção: a Petrobrás.

Em seus primeiros momentos, a operação foi extremamente bem recebida pela imensa maioria da população: todos assistiam, entre estupefatos e felizes, a gente muito poderosa ficar atrás das grades, algo que parecia até então impossível ou impraticável. Era a continuação da catarse de 2013, quando o povo saiu às ruas em princípio contra a má qualidade dos serviços públicos e terminou pedindo a cabeça do sistema político.

Obrigado a ceder para acalmar os ânimos acirrados que percorreram o País e literalmente invadiram Brasília, os poderes constituídos (Legislativo e Executivo) aprovaram a toque de caixa medidas para agilizar o combate à corrupção, entre elas o instituto da delação premiada, que se tornaria a marca da Lava Jato. A partir dali, o governo de Dilma Rousseff (PT) – mulher digna, mas pouco política – dava toda a autonomia para que investigações fossem conduzidas pelos órgãos de Estado. Ministério Público e Polícia Federal foram fundo – e, por ironia, vitimaram principalmente o partido da então presidente.

Márcio Garcia, Marcelo Serrado, Susana Vieira e Juliana Knust: Fora Dilma criou fã-clube de artistas para o “herói” Moro | Foto: Reprodução Instagram

Ocorre que a vaidade é o pecado favorito do demônio, como diz a célebre frase da cena final de “O Advogado do Diabo” (1997). E quem deveria investigar, denunciar, acusar, condenar e prender começou a trocar o ofício pela fama. O sucesso subiu à cabeça da “República de Curitiba” – expressão que ficou célebre por uma declaração do ex-presidente Lula, em um dos muitos áudios vazados sem autorização. Sérgio Moro, por sua vez, foi elevado a herói nacional e esteio do patriotismo na luta contra a corrupção, a ponto de artistas famosos se tornarem militantes não apenas da causa lavajatista, mas de seu protagonista. Susana Vieira, Marcelo Serrado, Juliana Paes, Márcio Garcia e outros globais integraram o “Morobloco” nas passeatas pelo impeachment de Dilma.

Noções de Direito não são algo que conste do currículo do ensino básico e faz uma falta danada para analisar o porquê de a Lava Jato ter feito o percurso de “médica” a “monstro”. Para quebrar o “mecanismo” – um sinônimo para “sistema” e que virou nome de filme sobre a operação –, promotores e juízes destruíram também o devido processo legal e se tornaram uma ameaça ao estado democrático com seu “código de processo penal da Rússia”, como brincavam os promotores em suas conversações vazadas (“Russo” era o apelido de Moro entre eles). Mas as pessoas, no geral, não conseguiam – e grande parte até hoje segue assim – enxergar a quebra dos processos penais e da ampla defesa. Porque talvez (e isso fica para reflexão), já tenhamos um certo costume de ver as infrações sendo cometidas com quem pode menos.

Juristas passaram a criticar o que acontecia. A imprensa, com raríssimas exceções, tomou a causa de Sérgio Moro e cia. sem o necessário juízo crítico. As redes sociais e o crescente aplicativo-influencer WhatsApp tomaram a Lava Jato no colo como o remédio para o Brasil. E, a cada revelação de revista no fim de semana, cada áudio no “Jornal Nacional”, cada prisão espetaculosa, crescia na população a necessidade de se deleitar mais e mais com aquilo. E o ápice de tudo, pelo andar da carruagem que o próprio Moro conduzia – como se veria anos depois –, seria a apoteótica prisão do “chefão” Lula.

Delações instrumentalizadas
O fato é que o instituto da prisão temporária – que, diferente da preventiva, não tem prazo delimitado – fez com que figurões ficassem guardados durante meses sem julgamento. Essa forma de encarceramento passou a ser também um artifício para pressionar o preso a abrir o jogo do que sabia e incriminar outras pessoas. A delação de peixes mais graúdos foi uma condição muitas vezes negociada pelo Ministério Público Federal (MPF), tendo dado em troca o relaxamento da prisão e a diminuição das penas em muitas vezes, até quase as tornando insignificantes.Um exemplo: Alberto Youssef, o doleiro que abriu as portas da operação, foi inicialmente condenado a mais de 120 anos em nove processos; após fechar um acordo de delação premiada com o Ministério Público Federal (MPF), o total da cadeia caiu para… 3 anos.

Voltando os olhos para Cármen Lúcia, por que razão ela teria voltado atrás em um voto sobre a suspeição de Moro no julgamento de Lula? Foi mesmo pressão de Gilmar Mendes, chamado por opositores de “ministro laxante”, por supostamente soltar tudo e todos?

Ministra Cármen Lúcia não precisou de “conselhos” de Gilmar Mendes para “desvirar a mesa” das arbitrariedades da Lava Jato | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Na verdade, Cármen se moveu e “desvirou a mesa” do Judiciário por conta de um feitiço usado contra o feiticeiro: as mensagens vazadas para a imprensa pelo hacker em 2019, e que acabaram por mostrar “por dentro” como ocorria a cooperação entre Ministério Público e o juiz da causa, ambos em conluio contra a defesa do acusado. Ao ponto de grampearem e monitorarem em tempo real o escritório de advocacia que cuidava dos direitos do ex-presidente. Coisa de um juiz que já sabia o que queria provar.

A suspeição, porém, já era requerida pela defesa de Lula bem antes da Vaza Jato. Baseava-se em vários pontos, entre eles o de que o agora ex-juiz não seria o “dono” da causa, que teria sido levada “na marra” para Curitiba, de modo a que o petista não escapasse das garras de Moro. O ministro Edson Fachin não soube disso este mês: pelo contrário, a questão do foro adequado para o julgamento de Lula esteve por anos e anos diante dele. Por que só agora decidiu assim? Boa pergunta para se fazer ao magistrado.

A Lava Jato será enterrada porque fez mal ao estado democrático de direito. Mas, com ela, não pode morrer a luta contra a corrupção. Malfeitores precisam saber que podem ser punidos. Mas mesmo o pior deles deve ter acesso ao mais fundamental: a ampla defesa. Não foi o que a Lava Jato deu a Lula. E, afinal, se fazem o que fizeram com um ex-presidente da República, o que esperar do trato desse tipo de Justiça com pessoas comuns?