Bolsonaro, o subversivo
24 julho 2022 às 00h00
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A palavra “subversão” é originária do latim subversio, que, por sua vez, vem do radical subvertere, que significa “virar de cabeça para baixo” – sub significando “por baixo” ou “debaixo de” e vertere, “virar de cima para baixo alguma coisa”.
No sentido primeiro, subversio caracteriza uma ação que provoca a destruição ou a inversão da ordem natural; aniquilar ou derrubar alguma coisa. Um outro significado do verbo em latim subvertere é “se rebelar e derrubar a ordem estabelecida”. A subversão inverte o jogo: quem estava em cima cai e os que estavam embaixo se elevam. Isso causa desordem e confusão, até que a nova ordem se estabeleça e se firme.
Quem viveu na plenitude os tempos da ditadura militar conhecia muito bem o termo: ser chamado de “subversivo” era o equivalente a ter estampado na testa o rótulo de ativista contra o sistema. A linha dura do regime levou aos porões e celas escuras dos quartéis e delegacias muitos subversivos que nem sabiam o que aquilo significava e outros que, conhecedores da realidade, mas não revolucionários, pagaram pelas posições que ocupavam (artistas, escritores, jornalistas, celebridades etc.), vistos como ameaças ao menor sinal de irreverência com o “status quo” autoritário.
Como lembrou o jornalista Reinaldo Azevedo na semana passada, em seu programa diário O É da Coisa, na Rádio BandNews, ser subversivo naqueles anos era um motivo de se orgulhar. Mas por quê? Porque, do outro lado, estava um governo opressor e antidemocrático, que se impunha pelo poder da força e negava à Nação o direito fundamental de escolher seus representantes.
Jair Bolsonaro era militar durante no governo de José Sarney (1985-1990), portanto, quando o Brasil dava os primeiros passos na redemocratização, com a pesada carga dos anos fardados ainda a fazer uma pressão invisível, mas presente, sobre as Casas de poder. O capitão, tal qual um líder sindical, tentava insuflar seus colegas por questões salariais. Ao ponto de fazer publicar em setembro de 1986, na revista Veja, então o principal veículo impresso do País, o artigo “O salário está baixo”. Aproveitando um fato noticioso da época – um desligamento de cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) –, ele escreveu no texto, entre outras coisas: “Em nome da verdade, é preciso esclarecer que, embora tenham ocorrido efetivamente casos residuais envolvendo a prática de homossexualismo, consumo de drogas e mesmo indisciplina, o motivo de fundo é outro. Mais de 90% das evasões se deram devido à crise financeira que assola as massas de oficiais e sargentos do Exército brasileiro”.
Na época, a declaração foi vista como “ato de indisciplina inadmissível” pelo ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves. Bolsonaro ficou preso por 15 dias, por ter “cometido transgressão grave”. Mas, por outro lado, foi visto como herói por boa parte dos militares, que se solidarizaram com ele – os que fizeram de maneira pública e ostensiva também acabaram apenados de alguma forma.
Dava-se ali o ponto inicial da trajetória política de Bolsonaro, que, no ano seguinte, voltaria às páginas da mesma revista Veja também por conta de remunerações a militares, só que de uma forma mais radical: um plano para conseguir melhores vencimentos para a categoria, batizado de “Beco sem Saída”. Consistia na explosão de bombas simultaneamente nos banheiros de várias unidades do Exército: na Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao), na Aman e em outros quartéis, caso o índice de reajuste dos soldos ficasse abaixo de 60%. Era outubro de 1987 e, na edição seguinte, depois de Bolsonaro tentar desmentir seu projeto, a Veja publicaria desenhos feitos à mão por ele que indicariam a viabilidade de explodir, com uma bomba-relógio, a adutora do Guandu, reservatório de água do Rio de Janeiro.
O caso o levou a ser julgado e condenado em primeira instância pelo Superior Tribunal Militar (STM), que, porém, o absolveria da acusação no ano seguinte. Mas sua carreira na ativa teria de terminar: transferiu-se para a reserva como capitão e virou político, obtendo cadeira de vereador pela capital carioca ainda naquele ano. Dois anos depois, se tornaria deputado federal, na primeira de sete eleições consecutivas. O resto da história todos já conhecem, de uma forma ou de outra.
Isso tudo para chegar até aqui e poder dizer, com fatos, que Bolsonaro é subversivo desde os primórdios. Sua trajetória política nasce da subversão e navega nela até chegar à Presidência da República, por uma sequência de acontecimentos que serão lembrados com espanto pela história em algumas décadas.
Como presidente, Bolsonaro se tornou tão subversivo que conseguiu subverter até o conceito de subversão: com ele, ela ocorre a partir de quem está no poder, mas se coloca, para os seus, como um herói intrépido a lutar contra “ditadores” do Supremo Tribunal Federal (STF) e “magistrados parciais” no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), todos prontos a lhe tirarem o cargo que ocupa para entregá-lo ao “outro lado”, como ele agora resolveu chamar Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Ao contrário de Reinaldo Azevedo e dos jovens sonhadores dos anos 60 e 70, o ser subversivo que há em Bolsonaro quer regredir ao autoritarismo e não repeli-lo. Acusando os outros de fazerem o que ele próprio comete, o presidente pisa na Constituição a cada dia. Em um momento, isso se dá por meio de um “pacote de bondades” escrachadamente eleitoreiro e que vai estourar os cofres públicos – para um fim justo, que é atender aos mais carentes, mas com anos de atraso, porque este governo nunca havia se preocupado com políticas públicas para combater fome e miséria. Em outros, é em forma de ataques diretos aos sustentáculos da democracia, chamando seus desafetos daquilo que ele mesmo é.
Na segunda-feira, 18, no auge de seus ataques subversivos, o capitão da reserva submeteu dezenas de embaixadores e a audiência da TV estatal a escutarem suas mentiras repetidas – pois nem diferentes eram as falácias – sobre o processo eleitoral brasileiro. Mostrou, em um projetor de mídia, vídeos com eleitores reclamando de que os votos que teriam dado não foram computados para seus candidatos, sempre sem comprovação de que aquilo tivesse ocorrido por fraude no sistema e não por inabilidade do cidadão ao manusear as teclas da urna.
Nunca se viu um chefe de governo ou de Estado convocar seus pares do mundo inteiro – porque, em última instância, as embaixadas são postos avançados dos governos de seus países – para um espetáculo desse naipe, entre o grotesco e o nonsense, mas sempre vexaminoso.
Bolsonaro, no auge de sua subversão, cometeu, diante dos representantes de tantas nações, um crime de lesa-pátria. Vivêssemos em um quadro de funcionamento das instituições e ele não teria a seu lado, naquela reunião, o ministro da Defesa; vivêssemos na plenitude democrática e os partidos todos e suas lideranças teriam se unido em uníssono contra tal festival de insanidade; vivêssemos segundo a vigência plena da lei e estaria Bolsonaro, há muito, longe da cadeira presidencial, a qual nunca honrou ao se sentar.
Passando recibo de que já se considera derrotado nas urnas, Jair Bolsonaro agora estrebucha contra a democracia que o acolheu desde que fora “convidado a deixar” o Exército. Além de subversivo é, portanto e também, ingrato.