Bolsonaro, Moro, Lula e a democracia

28 novembro 2021 às 00h00

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Os valores democráticos estão em desuso no planeta – para cada país que os aperfeiçoa, dois outros estão em rota contrária

“Democracia é o pior dos regimes, com exceção de todos os outros.” A frase é das mais famosas de Winston Churchill, o primeiro-ministro conservador do Reino Unido que foi esteio fundamental para a Europa não ser vencida pelo nazismo. Diz muito aos tempos atuais e, de modo especial, à conjuntura brasileira, onde todos veem autoritarismo em tudo: bolsonaristas creem que ele está instalado no Supremo Tribunal Federal (STF); já a oposição ao governo enxerga discursos e práticas autoritárias no titular do Palácio do Planalto.
É bem verdade que Jair Bolsonaro nunca negou seu instinto antidemocrático. Ainda em 1999, em entrevista a um programa local no Rio de Janeiro, confessou que, se fosse presidente, “daria um golpe no mesmo dia (em que tomasse o poder)”, entre outras declarações bem espalhafatosas e que, num país sério e com Legislativo respeitável, o teriam levado à cassação imediata por pregar golpe de Estado e desrespeitar a Constituição.
Não foi assim, e o que era um “se” virou fato. Mas o golpe não veio, nem no primeiro nem depois de mil dias. É verdade que menos pela vontade de Bolsonaro e sua militância do que pela falta de condições políticas para tanto. O dia 7 de setembro de 2021 vai entrar para a história, quando a data for estudada no futuro, como o dia em que o presidente fracassou no intuito de desafiar as instituições democráticas.
É, no entanto, uma meia derrota. De cada lado. No ringue já há alguns anos, a democracia brasileira está grogue. A prova disso veio nesta semana. De acordo com dados do Instituto para a Democracia e Assistência Eleitoral (Idea), o País é hoje sede da democracia que registrou mais piora no conjunto de fatores que medem a qualidade do regime nos último cinco anos. Os retrocessos vieram em oito aspectos – entre eles liberdades civis, independência do Judiciário, integridade da imprensa e liberdade de expressão.
Com sede, em Copenhague, o Idea é uma organização intergovernamental apoiada por 34 países e que se dedica ao estudo e à avaliação da democracia. O relatório total se baseia no acompanhamento de 16 fatores relacionados ao funcionamento adequado de regimes democráticos.
Como se pôde ver, a medição do Idea se refere também a um período pré-Bolsonaro. Em outras palavras, a democracia já estava definhando antes mesmo de a candidatura do “mito” virar hit.
Nesse sentido, entra em questão um fator que, em princípio, pareceu positivo, mas que, com seu desenrolar, mostrou a verdadeira face: a Operação Lava Jato, tendo à frente o então juiz Sergio Moro, deixou no cárcere, pela primeira vez, algumas dezenas de políticos e grandes empresários. O problema é que – conforme foi sendo verificado no decorrer de suas diversas fases e acabou sendo comprovado pelos diálogos obtidos pelo site The Intercept Brasil – houve mais justiçamento do que justiça. A cereja no bolo foi a decretação da parcialidade de Moro na condução dos inquéritos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, alijado da disputa à Presidência em um processo eivado de irregularidades.
De um modo diferente da prática de Bolsonaro, Sergio Moro ajudou a corroer a democracia ao levar à população a mensagem de ódio à política e aos políticos. A sanha justiceira da Lava Jato não precisava dos ritos tradicionais do Direito, encadernados no Código de Processo Penal: as conduções coercitivas e prisões arbitrárias e o peso excessivo das delações premiadas como instrumento para fundamentar sentenças condenatórias ajudaram a afundar o sistema sem colocar nada no lugar. Ou melhor, colocou a antipolítica, que não propunha nada a não ser a retirada dos que nela estavam. Em suma, Moro e seus comparsas de Lava Jato elaboraram o cenário perfeito para um aventureiro se destacar. E, mesmo com 30 anos de Legislativo improdutivo, Jair Bolsonaro foi erguido ao Planalto com essa propaganda. E para lá levou… Sergio Moro, seu superministro da Justiça e agora ex-juiz.
Sobre os anos Bolsonaro e os ataques à democracia não é preciso falar muito: o conjunto da obra diz tudo. Deixemos de chover no molhado e nos concentremos agora no dissidente Moro. Ao deixar o ministério sob alegação de que o presidente estava interferindo na Polícia Federal, pareceu que o herói da Lava Jato entraria no ostracismo. Foi para os Estados Unidos, virou consultor da empresa Alvarez & Marsal, que foi contratada como administradora do processo de recuperação judicial da Odebrecht – a empresa que Moro ajudou a afundar por meio da Lava Jato.
Agora, o ex-juiz e ex-ministro é político confesso. Filiou-se ao Podemos e tem tudo para ser o candidato do partido nas eleições presidenciais de 2022. Mudou – ou está tentando mudar – até mesmo a impostação de voz, cujas falhas o fizeram virar meme de sites humorísticos.
Porém, o que não muda em Moro é a dissimulação para aplicar seu autoritarismo. Ao contrário de Bolsonaro, sempre bem explícito no que pretende, o novo político tem uma “capa” de democrata, avalizada – é preciso ressaltar – por uma série de importantes veículos de comunicação e colunistas políticos.
É com as vistas grossas desses protagonistas da mídia que Moro pode falar, sem nenhuma grande repercussão, em propor a criação de um tribunal acima da Suprema Corte para julgar crimes de corrupção. O modelo, completa o ex-juiz, vem da Ucrânia. A ideia foi explanada em artigo publicado na revista Crusoé, simpática a seu nome e na qual possui uma coluna. Com o título A Corte Superior Anticorrupção (da Ucrânia), Sergio Moro defende que haja, hoje no Brasil, uma “insuficiência da ação dos vigilantes”, ou seja, do Poder Judiciário. É uma crítica velada a instâncias como o STF, e a partir da qual ele vê brechas para encaixar um conceito de omissão da Justiça contra casos de grande corrupção e que só poderiam ser supridos com um tribunal à parte. Numa miscelânea tão tosca como sem sentido, diz que o Tribunal Penal Internacional seria um exemplo disso.
Cascas de banana
Para completar o cenário pré-eleitoral, ao fim de um tour bem qualificado pela Europa, o ex-presidente Lula deixou escapar uma declaração desastrosa em entrevista ao periódico espanhol El País, ao ser questionado sobre a situação da democracia na Nicarágua, onde o ditador esquerdista Daniel Ortega estacionou na cadeira de presidente e fez prender seus concorrentes às últimas eleições como forma de “facilitar” sua vitória. Lula disse que, se Angela Merckel pode ficar no poder por 16 anos, “por que não Ortega?”, diante de duas estupefatas repórteres.
O que temos, ao fim, são três pré-candidaturas de proa para o cenário de 2022 pisando em cascas de banana no que diz respeito à atenção aos valores democráticos. Bolsonaro esmaga a casca com banana e tudo; Moro pisa de propósito na casca, mas diz que não foi ele; Lula sempre foi cercado de cascas de banana e mostra que já foi melhor para se desviar delas.
Infelizmente, os valores democráticos estão em desuso no planeta. O mesmo Idea lembra que, para cada país que caminha para o aperfeiçoamento da própria democracia, há outros dois vindo em sentido contrário.
A favor de Lula, o fato de ter ficado oito anos no poder sem atacar o Estado democrático, sem incitar o povo contra as instituições. Já Moro e Bolsonaro têm contra si a própria trajetória na vida pública. Churchill estaria preocupado.