Assembleia da ONU: com um script, Lula discursando é um poeta

24 setembro 2023 às 00h01

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Em outubro de 2021, na reunião do G20 – o grupo que congrega as 20 maiores potências da Terra, em Roma –, o então presidente Jair Bolsonaro, escanteado entre os líderes dos países, procurou puxar conversa com o pessoal de serviço. “Todo mundo italiano aqui?”, chegou a dizer a um garçom. Enquanto presidentes e primeiros-ministros se dividiam em rodinhas de bate-papos, o “mito” raramente se cercava de gente que não fosse de sua própria assessoria.
O mandatário acabaria por deixar o jantar oficial antes de o evento terminar. Como definiu à época o correspondente internacional Jamil Chade, era “um presidente fora de lugar”: “Na antessala do G20, Bolsonaro é o retrato de um país isolado”, comentou o jornalista, em artigo para o portal UOL. A personificação física do pária internacional que o Brasil havia se tornado, e do que chegara a se orgulhar o já então ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo.
Cortando para quase dois anos depois, o presidente do Brasil é outro. O cenário também: Nova York, na 78ª Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a qual, por tradição, tem sempre o presidente brasileiro fazendo o discurso de abertura. Luiz Inácio Lula da Silva, terceira vez eleito ao cargo, não foge do papel – expressão de duplo sentido, como veremos adiante – de se apresentar como protagonista.
Ao fim dos 21 minutos de uma fala muito bem planejada, ele havia sido aplaudido pelo menos sete vezes por boa parte da plateia. Por outro lado, gente importante na atualidade, como Volodymyr Zelensky, o presidente da Ucrânia, nem se mexeu – ou mexeu apenas no próprio smartphone, o que também pode ser sintomático em termos de reação ao que o petista dizia.
Em termos do que se espera de Lula, veterano frequentador das rodinhas dos principais estadistas do planeta, pode-se dizer que a fala na ONU recuperou parte do prestígio brasileiro afetado por declarações expressadas, digamos, no calor da emoção. Declarações de Bolsonaro? Não, dele próprio, Lula.
Desde que voltou à Presidência, Lula, com a fala livre, encarnou o sincerão desenfreado. Entre várias aspas polêmicas registradas pela atenta imprensa nestes quase nove meses de terceiro mandato, a que soou mais terrível foi a de que Vladimir Putin não seria preso se viesse ao Brasil para participar da cúpula do G20, no próximo ano. Durante a reunião do grupo na Índia, em entrevista a um site local, o presidente havia dito que o russo poderia vir “facilmente” ao Brasil. “Se eu for presidente do Brasil, e se ele [Putin] vier para o Brasil, não tem como ele ser preso. Ninguém vai desrespeitar o Brasil”.
Lula gosta de falar – e essa é a questão. Os improvisos parecem que têm um quê de inspiração divina, mas pode ser apenas o bafo do capeta
Foi uma declaração que misturou três coisas: espontaneidade, soberba e ideologia. Grandes líderes precisam administrar seu ego, porque detêm um poder gigante. Talvez a idade mais avançada tenha levado a tomar, como princípio, “dizer o que lhe der na telha”, mas isso é algo que é permitido apenas ao ancião comum. A um mês de fazer 78 anos, o brasileiro precisa usar os anos de estrada em seu favor, e não o contrário. Foi, felizmente, o que ocorreu em sua participação na reunião dos chefes das nações em Washington.
Lula gosta de falar – e essa é a questão. Os improvisos parecem que têm um quê de inspiração divina, mas pode ser apenas o bafo do capeta. De volta ao principal palanque global, o veterano estadista se ateve ao que havia preparado com sua equipe: com os valores mais tradicionais da respeitada diplomacia brasileira, ele fez a defesa da democracia, clamou pela cooperação entre todos os países e implorou sobriamente pela resolução pacífica de conflitos – não apenas o da Ucrânia.
Ainda que a direita raivosa minimize e até, dentro de sua bolha, menospreze o que ocorreu – para os radicalizados, entre outras coisas, Lula foi “ignorado” pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden –, o Brasil voltou da ONU maior do que foi. Em sua característica de sempre se apresentar como porta-voz das nações emergentes – e ele é mesmo –, disse, em nome do Sul Global, que o protecionismo dos países ricos é um impeditivo a diminuir a fome, a miséria e os conflitos no mundo.
Claro, Lula também alertou para a urgente necessidade de dar um giro de 180 graus na relação com o planeta, a fim de evitar a piora catastrófica que as mudanças climáticas estão trazendo, principalmente aos mais pobres. E, em plena Big Apple, condenou outra vez o embargo a Cuba – uma posição de sempre da diplomacia brasileira, diga-se –, bem como a caçada ao jornalista Julian Assange (considerado traidor pelos EUA) e o envolvimento de nações em guerras alheias. Alfinetadas na medida certa, já que há muito em comum na agenda de Lula e Biden.
O petista repetiu o mantra de que “a esperança venceu o medo” – o que desta vez, com a tentativa de golpe militar, soou muito menos um slogan do que comentário pertinente. Claro, Lula precisa “vender” um Brasil longe do que foi durante os tétricos anos bolsonaristas, mas sabe que não pode ter seu antecessor como régua. Tem noção de que seu limite – e o limite do País que dirige – é muito além e tem confiança de poder guiar não só o Brasil, mas conduzir o mundo para algo que pensa ser melhor.
Se isso é possível de fato ou não, não importa. A questão é que a formalidade impede que tudo acabe discutido como o papo de botequim com que, por personalidade – e é justamente isso que torna Lula popular, por isso, não há juízo de valor aqui –, o velho sindicalista costuma levar as interações.