Enquanto o governo federal tenta relativizar o caos, as pessoas continuam a sofrer com as perdas que comparações não vão trazer de volta

Fake news, pós-verdade, criação de uma realidade paralela. Todo dia, toda hora, tem um bolsonarista jogando dados feitos ao espelho de seus interesses para sua “imprensa alternativa”, de modo que, então, possam ser deglutidos e reproduzidos de forma rápida e irreflexiva por aqueles os quais querem continuar a manipular.

Justamente pela falta de honestidade nos números que exibe, essa turma tem sido cada vez mais escanteada pela grande mídia. Mas, além de SBT, Record e Rede TV!, que ainda estão decidindo se fazem jornalismo ou assessoria de imprensa para Bolsonaro, a trupe do governo têm algum espaço também em grandes emissoras, como a CNN, que conta em seus quadros com Alexandre Garcia, uma opinião engajadíssima a serviço do presidente e suas causas. E, da mesma forma, recebe alguma atenção de volta – ministros, por exemplo, falam com o canal e não com a concorrente Globonews.

Isso não significa que a CNN seja “chapa branca”. Mas, como no ditado segundo o qual o uso do cachimbo deixa a boca torta, os aliados acham que podem jogar as coisas no ar impunemente. Quando ocorre de toparem um jornalista que questiona um pouco mais os números que recebe, o caldo entorna.

Ministro Fábio Faria tira selfie durante discurso do presidente Jair Bolsonaro | Foto: Reprodução

Uma das mais informações importantes que são torturadas diz respeito à vacinação contra a Covid-19 no Brasil. No discurso bolsonarista, somos um dos países que mais aplicam vacinas. No braço do brasileiro, entretanto, as agulhadas não chegam tanto assim. O que acontece? Vamos a uma transcrição de um diálogo entre o apresentador da CNN Márcio Gomes e o ministro das Comunicações, Fábio Faria, numa entrevista ocorrida semana passada exatamente com esse tema:

— São 193 países, Márcio, e o Brasil é o 4º (em vacinação)!

— É o 4º do mundo em volume de vacinas, mas, proporcionalmente em população, 63º.

— Aí o número de mortos você faz proporcionalmente ou por número da população?

— O sr. é quem está falando em número de mortos, eu estou falando em número de vacinas aplicadas. Proporcionalmente à população…

— Você quer comparar o Brasil com Malta [país-ilha do Mediterrâneo, bem sucedido na vacinação]?! Você quer comparar o Brasil com…

— O sr. é quem está comparando, eu estou comparando o número de vacinas.

— Eu estou lhe dando fatos e você está me dando narrativas!

— Proporcional à população, estamos em 63º lugar. Só isso.

— Não, somos o 4º!

— Em volume de vacinas.

— É o que vale!

— Mas proporcionalmente à população, 63º.

— Temos 200 milhões de pessoas que moram no Brasil…

— Verdade.

— … 90 milhões de vacinas entregues, 65 milhões de doses aplicadas!

E continua o duelo-discussão entre jornalista e ministro. Eles se baseiam em um dilema que as crianças têm contato no ensino fundamental: a importância e o diálogo” que há entre valores absolutos e relativos. Em determinado momento, Fábio Faria insinua que a imprensa, na pandemia, se “aproveita” dos números absolutos quando supostamente lhe interessa (o total de mortes) e “relativiza” quanto à quantidade de vacinas aplicadas. Para o ministro, é importante ressaltar que já são quase 100 milhões de doses distribuídas. E, ainda, que relativamente o Brasil não está tão mal no quesito mortalidade por coronavírus.

Em meados de maio do ano passado, quando ainda existia o cercadinho da imprensa – abandonado depois por decisão dos próprios veículos de comunicação, dado o grau de acirramento das agressões aos profissionais –, Jair Bolsonaro já usava o argumento da proporcionalidade para tentar esconder a montanha de mortos que ainda começava a se destacar por aqui. Desde então, o Brasil escalou também o topo desse ranking.

Má notícia
Relativizar ou tornar absoluto. É uma questão que beira à filosofia entender as grandezas em suas diversas nuances. Mas temos uma má notícia para o presidente e seu ministro: o Brasil está caminhando para liderar também as mortes por milhão – ou seja, o ranking proporcional das vítimas por Covid em todo o planeta.

Depois de ultrapassar os Estados Unidos em mortes/milhão no mês passado, o Brasil alcançou o top 10 também em números relativos na pandemia em que é vice-líder de total de vítimas. Ao deixar a Bélgica para trás, o carro fúnebre com Bolsonaro no volante persegue, pela sequência: Eslováquia, Montenegro, Bulgária, Macedônia do Norte, San Marino, Gibraltar, República Checa, Bósnia e Herzegovina e Hungria.

Os países com mais mortes por milhão na pandemia | Fonte: Worldmeter

Os húngaros, que lideram a triste estatística, também são governados por um representante da extrema-direita, Viktor Orbán, que, ao contrário de seu parceiro ideológico da América Latina, está impondo uma vacinação em ritmo acelerado. À exceção dos minúsculos San Marino e Gibraltar (este um território britânico na Península Ibérica), todos os demais são da mesma região na Europa, chamada antigamente de Cortina de Ferro nos tempos da Guerra Fria. Metade é de países formados pela fragmentação da Iugoslávia.

O mau sinal para o atual argumento bolsonarista é que todos esses países estão em queda no número de mortes – e, à exceção dos macedônios, queda vertiginosa. Ou seja, dos países que ainda estão à frente no péssimo ranking, o Brasil é o único que não mostra tendência de arrefecimento da pandemia. Pelo contrário, depois de um período de estabilidade, todas as regiões do País mostram aumento de casos. A “terceira onda” é iminente, segundo especialistas, e a curva de óbitos, infelizmente, deve voltar a subir.

Mas este colunista resolveu mexer um pouco com os números para tentar entender melhor o nível da pandemia no País atualmente em relação a esses países europeus. Usando os dados da quinta-feira, 27, fizemos a média móvel de mortes de cada um nos últimos sete dias. Obviamente, por números absolutos, a do Brasil é disparadamente a maior.

Mas como acharíamos o valor relativo da média móvel? Simples: dividindo o total da população de cada nação pelo número de óbitos registrado na média móvel do dia 27. Assim, quanto menor o número final obtido, pior: estaria morrendo mais gente em relação ao total da população.

Então, fazendo a proporcionalidade “justa” do ministro Faria e do presidente Bolsonaro, qual o resultado? Pois é, o Brasil aparece na liderança mórbida entre esses países, com uma vítima da Covid-19 para cada 121 mil habitantes. A Macedônia, vice-líder, tem uma morte para cada 138 mil. E a atual líder do ranking proporcional, a Hungria? Uma morte para 247 mil, ou seja, para cada “morte proporcional” lá, há duas aqui. Com um óbito a cada 780 mil habitantes, a Eslováquia, a 9ª do ranking, pode ser ultrapassada pelo Brasil em duas semanas.

Porém, mais do que números, são vidas que se vão. E, senhor presidente e senhor ministro, não há nada de relativo na morte de um familiar ou de uma pessoa amiga. Só há uma tristeza absoluta.