A gestão de Sandro Mabel e o mito da “virada do milênio”
15 dezembro 2024 às 00h00
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O ano era 1999, e eu tinha apenas 6 anos de idade. Apesar de ser uma criança ainda inocente e cheia de vida nos olhos – ora, as preocupações se resumiam a não perder os desenhos animados nos sábados e comprar a cartolina da cor certa para os trabalhos escolares – eu me forçava a tentar entender o que se passava ao meu redor naquela época. Pairava uma certa euforia receosa, um entusiasmo acompanhado de medo e curiosidade com algo grande, prestes a acontecer. Nas ruas, no comércio, as visitas em casa, na TV, programas e comerciais não falavam de outra coisa: a virada do milênio. Lembro-me, inclusive, de uma propaganda religiosa que dizia, em tom solene e um tanto quanto ameaçador: “Você está preparado para a virada do milênio?”.
Bem, eu não sabia o que significava, mesmo com uns e outros falando em “Armagedom” e “fim do mundo” à minha volta. Uma colega na escola, inclusive, dizer que a mãe estava animada. “Vai ser o arrebatamento!”. O que sei é que o fatídico 31 de dezembro de 1999 finalmente chegara… e passara, como qualquer um outro. Lembro-me de ter tentado ficar acordado até tarde esperando um “boom”, um som de trombeta ou de engrenagem de nave alienígena pousando e disparando lasers. Nada. As profecias, todas, caíram por terra e o que mudou mesmo foi a página da boa e velha “folhinha”.
Quase 25 anos depois, sinto ter um déjà vu. A mesma sensação eufórica que eu percebia exalar de alguns, seguida da frase “O ano tem que acabar logo!”, pode ser vista em dezembro de 2024. O sentimento, no entanto, hoje, é regionalizado. Mergulhados em uma cidade que padece no caos do descaso, negligência, ingerência e indícios de corrupção em diversas pastas essenciais para a administração pública, os goianienses parecem se arrastar de forma desesperada pelas ruas, à espera do grande dia da virada de gestão.
E quanto mais o dia se aproxima, mais a situação parece ficar insustentável. Na última semana, após literalmente anos de desmazelo e omissão por parte da gestão municipal, a Justiça acatou o pedido feito pelo Ministério Público de Goiás (MPGO) e determinou a intervenção do Estado de Goiás na Saúde de Goiânia. O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) acolheu o voto do relator, o desembargador Jeronymo Pedro Villas Boas, e concordou com os argumentos do MPGO, que verificou na gestão municipal de graves problemas estruturais, administrativos e financeiros.
Conforme destacado pelo relator, os relatórios ministeriais evidenciaram a precariedade dos serviços essenciais, incluindo maternidades e unidades de pronto atendimento, com a falta de medicamentos, insumos básicos e pessoal suficiente para manter as unidades em funcionamento adequado. Como se não bastasse, o MPGO mostrou a existência de longas filas e falta de leitos, situação que ocorria simultaneamente aos atrasos de pagamentos de fornecedores de serviços terceirizados.
Não há como não reconhecer a urgência dessa medida. A situação caminha para uma calamidade caso não haja intervenção imediata”, destacou o desembargador Jeronymo em seu voto. A intervenção foi limitada até 31 de dezembro, última dia da gestão do prefeito Rogério Cruz. O dia da “virada de milênio” da gestão. E com isso, a sensação que parece acometer alguns goianienses é que, de 31 de dezembro de 2024 para 1º de janeiro de 2025, com a entrada da nova gestão. Todo e qualquer crise que hoje recai sobre Goiânia vai simplesmente… desaparecer. Ledo engano.
Eleito prefeito de Goiânia com mais de 70 mil votos de vantagem sobre o adversário (Fred Rodrigues, do PL), Sandro Mabel é gestor experiente e sabe bem a bomba que receberá em janeiro do ano que vem. Em uma coletiva de imprensa na manhã da última sexta-feira, 13, o prefeito eleito revelou que, logo no início de seu mandato, deve ser declarado estado de calamidade pública em duas pastas: Saúde e Finanças. Segundo ele, a medida deve facilitar a tomada de decisões e ações do Executivo para sanar as crises deixadas pela atual gestão. Ainda de acordo com o empresário e futuro prefeito de Goiânia, há especulações acerca de um montante de dívida do Executivo goianiense, a ser recebida por ele, de R$1,6 bilhão.
É muito provável que Mabel adote, por meses, o mesmo discurso adotado pelo governador Ronaldo Caiado quando assumiu o governo do Estado e as dívidas deixadas pela gestão tucana. A de “herança maldita”. O que não deixa de ser verdade. O prefeito eleito terá um duro início de gestão, com difíceis decisões e cortes impopulares a serem feitos. É notável o comprometimento da equipe que assumirá o Paço no próximo mês (há mais de um mês Mabel e seu time da transição têm trabalhado em uma posição de prefeito não oficial), mas levará um considerável tempo até que a a máquina pública goianiense seja regularizada.
Portanto, na “virada do milênio” de gestão, sem arrebatamentos, invasões alienígenas ou sumiço espontâneo da crise que se instalou de forma tão deplorável sobre a capital goiana: apenas um esforço conjunto e, quiçá, doloroso para a resolução dela.