O episódio sobre o Iphan descrito a empresários na Fiesp desnudou o que são o atual presidente da República e a essência da elite nacional

Bolsonaro discursa na Fiesp a plateia de empresários: crimes como agente público e menosprezo ao trabalho do Iphan | Foto: Reprodução

O ano é 2007, o mês é março, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se preocupa em dar andamento ao PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, carro-chefe de seu segundo mandato e de cujo sucesso ele considerava que dependia, em grande parte, a eleição de um novo nome do partido nas eleições seguintes, em 2010.

Duas grandes hidrelétricas, Jirau e Santo Antônio, estão em construção no Rio Madeira, em Roraima. Mas surge um problema no meio da empreitada, diante do impacto ambiental: a sobrevivência de uma espécie de peixe, a dourada, de grande valor comercial e bem popular na Região Norte – ao qual Lula resolve chamar, um tanto pejorativamente, de “bagre”. Foi a razão para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) fazer a construtora parar os trabalhos.

“Agora não pode [continuar a obra] por causa do bagre, jogaram o bagre no colo do presidente. O que eu tenho com isso? Tem que ter uma solução”, reclamou Lula, irritado, em uma reunião com seu conselho político. Tecnicamente, o Ibama cumpria seu papel: barrar o licenciamento das obras das usinas porque sua construção iria bloquear a migração dos peixes. E a discussão criava corpo porque o desejo do presidente encontrava uma barreira na própria equipe: a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.

Três anos depois, em caso parecido, o petista propôs um “monumento à perereca” no viaduto da BR-101 em Osório (RS), depois de a obra ficar seis meses parada para estudar o comportamento de um anfíbio que estaria presente apenas na região. “Se ela é tão importante, deve ter um monumento junto com a placa”, ironizou. De novo, a digladiação entre progresso e preservação.

Alcemos voo, deixando para trás o amplo crescimento econômico daquele período, e mergulhemos na crise institucional, política econômica, sanitária, ética e moral de 2021. É dezembro e o presidente Jair Bolsonaro (PL) está discursando para empresários na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). O nome do evento é Moderniza Brasil e ele fala sobre como seu governo tem disposição em trabalhar para “resolver os problemas dos empresários”, “destravar a burocracia” e “facilitar o ambiente de negócios”. Então, parecendo ter encontrado o exemplo perfeito de mostrar como seria esse “destravar”, solta a seguinte historieta:

— Há pouco tempo, tomei conhecimento que uma obra de pessoa conhecida, o Luciano Hang, tava fazendo (sic) mais uma loja e apareceu um pedaço de azulejo durante as escavações. Chegou o Iphan e interditou a obra [ênfase com tom irônico]! Liguei para o ministro da pasta, né… ‘Que trem é esse?’ – porque não sou inteligente como meus ministros. O que é Iphan, com ‘PH’? Explicaram para mim, tomei conhecimento, ‘ripei’ todo mundo do Iphan. Botei outro cara lá. O Iphan não dá mais dor de cabeça pra gente.” O caso ocorreu em dezembro de 2019, quando o empresário ligou para o presidente da República reclamando do transtorno e do atraso na obra, em Rio Grande (RS), paralisada depois de o Iphan ter encontrado material de interesse arqueológico.

Não dá para negar que ambos, Lula e Bolsonaro, têm estilos parecidos, buscando se fazer entender por meio de um linguajar popular. Falam, acima, em reação a problemas semelhantes: a interferência de órgãos técnicos, por meio de profissionais concursados e a serviço do Estado, em grandes empreendimentos. As semelhanças acabam por aí.

À época dos acontecimentos descritos acima no governo Lula, quando não havia ainda redes sociais – pelo menos com o alcance que têm hoje –, apenas a mídia tradicional repercutia as declarações e as eventuais polêmicas. O “caso dos bagres” foi um dos episódios chave que levariam à demissão de Marina, em 2008. Outra consequência direta foi a divisão do Ibama, para criação do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio). Lula tomou medidas politicamente (e legalmente) dentro de suas pretensões e privilégios em relação ao entrave detectado.

No evento de Bolsonaro com os grandes empresários paulistas, o que ele confessa com todas as palavras, na verdade, tem pouco ou nada a ver com dar agilidade às burocracias. Não que seja grande novidade depois de três anos de governo de extrema-direita, mas o que se mostra, de um jeito escandaloso, é um ato de descaso e desprezo com a coisa pública, da qual deveria ser o principal cuidador.

A diferença-mor entre Lula e Bolsonaro ao se deparar com Ibama e Iphan, respectivamente, é que o petista, à época, discutiu com seu ministério o que poderia ser feito para agilizar a obra, de óbvio interesse público; o atual presidente toma uma decisão totalmente arbitrária, sem nem mesmo querer se dar conta do que está em discussão, em prol de um empreendimento privado, numa relação de compadrio.

Código Penal
É isto: para atender à solicitação que beneficiaria o erguimento de uma nova loja de seu apoiador, Luciano Hang, Bolsonaro se vê autorizado pelo cargo. Talvez se sinta imune ao Código Penal, mais precisamente ao artigo 321, que trata da advocacia administrativa – “patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário”. Um bom delegado ou promotor o enquadraria, não só nesse, mas também no 319, por prevaricação (artigo 319) – em tempo, nada que obste também um procedimento cível por improbidade administrativa.

Não se soube se Bolsonaro disse que ignorava o que seria ou para que servia o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) por ironia. Realmente é factível que, por seu histórico pessoal, não soubesse nem fizesse mesmo questão de saber. Da mesma forma, provavelmente não entende o que significa patrimonialismo, uma das grandes chagas que o Brasil carrega nas costas ao longo dos séculos.

Ser patrimonialista é nada mais do que usar o Estado para si e seus amigos. Uma prática que, aliás, remonta à fundação destas paragens. Quando Portugal fatiou e outorgou a governança das terras tupiniquins para 14 famílias, instaurou uma prática que existe no mundo todo, mas que é “sui generis” por aqui. Acostumamo-nos desde as capitanias hereditárias com o “jeitinho brasileiro”. Por isso, muitos brasileiros se escandalizam quando se veem, no exterior, diante de regras que consideram rígidas demais – e os estrangeiros, por aqui, se surpreendem com o contrário.

Outro efeito nefasto do patrimonialismo na veia se observou na própria plateia da Fiesp: um presidente afirmar ter usado seu cargo e sua autoridade para ajudar um amigo a se livrar da lei não causou vergonha aos empresários. Ao contrário, gerou aplausos. A história torta de que foi vítima este País durante séculos construiu essa elite mimada e ignorante, que acha ser poder e dinheiro os valores máximos da existência. Cultura, pra quê? Para que serve um pedaço de azulejo antigo diante de uma nova loja da Havan?

Em tempo: diz muito sobre os empresários brasileiros e sua relação com este governo o fato de a classe – depois de três anos de desastre econômico e ambiental, uma tentativa de golpe e 620 mil mortos no meio – dar a Bolsonaro 47% de intenção de votos na recente pesquisa Datafolha. Lula, entre os empresários, tem apenas 21%. Ainda bem que o Brasil todo não é espelho de sua elite.