Ao contrário da vida de deputado, o mandato acaba logo ali, com número finito de reeleições. O que fazer, se as pessoas começaram a sentir na pele e no bolso o custo do desgoverno?

All-in é uma expressão criada no pôquer. Diz respeito a uma decisão radical geralmente tomada quando o jogador está em uma das duas situações: ou excessivamente confiante ou totalmente desesperado. É a hora em que o sujeito toma todas as fichas que lhe restam e coloca no chamado “pote”, ao centro da mesa.

Apostadores profissionais sabem que fazer um “all-in” é quase sempre desaconselhável. É arriscar demais em uma jogada apenas, ao passo que haverá dezenas, talvez centenas de outras “mãos”, como são chamadas as rodadas. Claro, com um “all-in” o apostador arrojado pode ser bem-sucedido e ganhar o jogo. Aquele jogo. Para ser, porém, lucrativo no longo prazo, é necessário ter mais paciência e muito menos impetuosidade.

“All-in” também existe para outras modalidades. Em apostas esportivas, já muito comuns há tempos na Europa e cada vez mais populares no Brasil, a situação mais comum é abrir uma banca em uma casa de apostas, colocar certo capital, de repente começar a fazer algum lucro – a tal “sorte de principiante” – e, quando vem uma pequena sequência de “reds” (as apostas perdidas), ficar ansioso para recuperar rapidamente o que passou a ter de prejuízo. Como? Arriscando além da conta da prudência. O final é certo: talvez consiga se safar aqui ou ali, mas no fim vai quebrar a própria banca.

A tática serve também aos jogos de poder. No caso de Jair Bolsonaro (sem partido, ainda), a data do “all-in” está marcada por ele próprio: terça-feira, dia 7 de setembro, nomeada por alguns de seus seguidores como o dia da “Nova Independência”.

Faz tempo que Bolsonaro entrou em “red”. Na verdade, desde o começo do mandato. Ele tirou a sorte grande de se colocar como opção para o País em um momento de ruína da política e das instituições: a Operação Lava Jato tinha feito o que fez, levando ao limite aquele desprezo perene que os brasileiros devotavam aos políticos. Presidente, ministros, juízes, parlamentares, todos os atores foram colocados na máquina de moer. Era preciso um restart, alguém “de fora” desse sistema.

Talvez, se fosse vivo e candidato, teria sido a grande chance do doutor Enéas Carneiro, conhecido pela fala acelerada e em alto volume, da qual saía sempre um discurso ultranacionalista e anticorrupção. Se Sérgio Moro tivesse deixado a toga de lado um ano antes, provavelmente seria ele o salvador da pátria e não um ministro descartado. Na falta de ambos, um Luciano Huck da vida talvez se daria muito bem.

Em 2018, ao ver a lista de postulantes à Presidência, lá estavam nomes mofados ao olhar dos brasileiros revoltados com o status quo: o “petista” Fernando Haddad, o “coronel” Ciro Gomes, o “banqueiro” Henrique Meirelles, a “monótona” Marina Silva, o “óbvio” Geraldo Alckmin, o “político” Álvaro Dias (as aspas dizem respeito ao julgamento dos envolvidos por grande parte do eleitorado, não exatamente o pensamento do autor do texto).

Restavam no jogo como opções – novamente com a ressalva de ser diante da visão desses brasileiros revoltados – Guilherme Boulos (PSOL), que parecia para esse contingente um Lula 2.0; Cabo Daciolo (Patriota), um maluco beleza cristão; João Amoêdo, aquele que talvez tivesse capacidade, mas não chance, para mudar tudo aquilo que estava lá (e que dois anos depois, incrivelmente, passou a ter muito mais votos declarados do que teve nas urnas em 2018); e Jair Bolsonaro, o Messias.

Foi com esse jeito de predestinado até no nome que ele conseguiu se transmutar de piada eleitoral pós-campanha de 2014 para pesadelo empossado no dia 1º de janeiro de 2019. E é preciso admitir: no percurso até os reveses lhe reverteram benesses – o exemplo mais radical disso foi a facada.

Só que a vida é jogo bruto e a política, já mostrou “Game of Thrones”, é a versão embrutecida da vida. O sortilégio de Bolsonaro como “mito” teria tido final feliz se a saga terminasse com ele recebendo a faixa presidencial. Ponto, the end, o filme acabava ali, após ter contado a fantástica ascensão aos píncaros do poder do verdadeiro homem comum padrão brasileiro, aquele que conta piada de corno para os amigos e fala bravata nos churrascos da família.

O problema é que o prêmio de quem vence uma eleição é assumir o mandato. No caso de um deputado – prêmio que Jair ganhou oito vezes –, dá para ficar quieto ali no canto do plenário, até tirando um cochilo de vez em quando, ir à tribuna para exaltar alguma bizarrice feita contra os direitos humanos, contratar uns assessores para esquemas estratégicos, participar de programas de TV que se alimentam de lixo verborrágico e chegar à próxima eleição sem obviamente ter feito nada de útil, mas com visibilidade suficiente para enganar o eleitor de novo.

A massa estranha
Eis a questão: o bravateiro Jair foi ganhando visibilidade demais depois de todos os acontecimentos em sequência desde 2013. De tal modo que chegou um determinado momento em que, ironicamente, ele queria menos ser presidente do que essa massa estranha passou a querer que ele fosse.

E foi assim que o tenente indisciplinado do Exército – aquele que só virou capitão porque os militares o fizeram ir para a reserva como paliativo para todo o imbróglio – que um dia planejou explodir quartéis e adutoras virou o chefe supremo das Forças Armadas. Sem deixar de ser o tiozão reaça do churrasco, aliás, o papel que melhor desempenha no dia a dia, todo dia, no cercadinho do Alvorada.

Mas ser presidente dá trabalho. Porque é muita gente olhando o que (não) se faz. Não é a zona de conforto da poltrona macia daquela Casa ao lado, na mesma Praça. Até porque o mandato acaba logo ali, com número finito de reeleições. Fazer o quê, agora, se não se fez nada e as pessoas começaram a sentir na pele e no bolso o custo do desgoverno?

Dobrar a aposta. O “all-in”. Bolsonaro quer convencer as pessoas de que ele não governa não porque não saiba nem queira, mas porque não deixam. O STF, os governadores, a mídia, a oposição, os globalistas. A ideia do novo 7 de Setembro é proclamar Jair Bolsonaro dependente – e, portanto, vítima – do sistema e fazer aqueles a quem chamam de povo lutar por sua “liberdade” e por seu “futuro”, materializados no capitão indisciplinado.

É bom, no entanto, repetir aquela frase aqui acima, já meio escondida no texto: ele queria menos ser presidente do que essa massa estranha passou a querer que ele fosse. E querem tanto quando ele que isso continue, apesar do caos sanitário, ambiental, econômico e institucional. Até porque o caos é seu habitat.

O bolsonarismo ganhou esse nome por causa de quem elegeram, mas a ideia já existia antes. E é ela quem dá suporte para bancar essa aposta suicida. Nossa sorte, como Nação, é que operações “all-in” não costumam indicar um futuro muito próspero para o jogador.