Por que não existem museus de Ciência ultrapassada?
04 setembro 2023 às 18h33
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Existem muitos tipos diferentes de museus de Ciência: os de história natural, onde se pode aprender sobre a evolução e dispersão das espécies e culturas humanas com fósseis e artefatos arqueológicos; museus de inovações tecnológicas, onde se pode visitar espaçonaves e antecipar o futuro das tecnologias; existem os planetários para ver o movimento dos astros; e muitas outras propostas. Entretanto, a educação científica não possui uma variedade de coleção comum nas outras formas de conhecimento. Não há na Ciência o equivalente ao museu de arte antiga, ou uma biblioteca da ciência ultrapassada.
É claro que existem locais que misturam a história pessoal dos pesquisadores com suas descobertas, como o Palazzo Castellani, onde Galileu Galilei viveu e trabalhou. Ali, na cidade de Florença, o visitante pode olhar o telescópio pessoal de Galileu, ler as anotações de seus códices pessoais, entender o objeto de seu trabalho e suas contribuições para a evolução do conhecimento (pode-se também ver o dedo médio de Galileu mumificado dentro de um globo de vidro). Entretanto, mesmo no Palazzo Castellani, os operadores do museu não ensinam os visitantes sobre os cálculos e problemas que Galileu atacou de fato na maior parte de seu tempo.
O que ocorre é que, no século XVI, a astronomia dos gregos Aristóteles e Cláudio Ptolomeu estava sendo ultrapassada pelas observações e cálculos de Nicolau Copérnico, Tycho Brahe, Johannes Kepler e outros que viriam a moldar a astronomia moderna. Para ensinar o público contemporâneo sobre o trabalho de Galileu, seria necessário primeiro ensiná-lo conceitos científicos ultrapassados. O que se faz, na realidade, é dizer ao público que Galileu ajudou a modificar as noções antigas de Terra no centro do universo e céus imutáveis – mas divulgadores e museólogos não se esforçam para ensinar como Galileu fez isso, pois as próprias teorias e cálculos de Galileu já foram ultrapassadas.
Isso não quer dizer que os cientistas propositalmente ocultam os problemas que Galileu resolveu para proteger os leigos do conceito de geocentrismo, ou para não cansá-los com cálculos antigos. Na verdade, nem mesmo os físicos e astrônomos sendo educados nas melhores universidades de hoje lêem os escritos de Galileu ou as obras de Newton. Por que eles deveriam? Tudo que o estudante necessita saber está recapitulado de uma forma mais breve, mais precisa e mais sistemática em diversos livros-texto atualizados. Quem realmente quiser se aprofundar no assunto é capaz de encontrar as publicações de Galileu, apenas não vai encontrá-las em um livro didático feito para estudantes.
A negligência das percepções antigas é um fenômeno causado pela própria história da substituição de paradigmas científicos. Nos séculos XVI e XVII, o conflito teve um desfecho conhecido – a tradição da igreja católica deu espaço às descobertas dos astrônomos. Hoje, quem sabe narrar essa história são os cientistas educados à luz das descobertas de Hubble e Einstein, e, para eles, a contribuição de Galileu parece ter sido cumulativa, teleológica; ou seja, parece ter tido o objetivo de dar acesso ao que sabemos hoje. É claro que este não é o caso. No futuro, cientistas e leigos poderão olhar para a obra de Stephen Hawking como mais um degrau passageiro para o quadro mais complexo do conhecimento que ainda está por se formar, e pode ser também que muitos problemas que Hawking lutou para resolver nem sejam problemas de fato, e estes capítulos de sua obra poderão ser simplesmente omitidos.
Voltando a uma comparação com outras áreas do conhecimento: por que o público se interessa por arte renascentista, mas não lemos mais livros que defendem a teoria do flogisto*? Até hoje, alunos de graduação em Letras conhecem as obras mais antigas da humanidade, como os poemas épicos de Homero e a Epopeia de Gilgamesh, que datam mais de quatro mil anos. Por que alunos de medicina não se interessam por saber como curandeiros medievais faziam sangrias? Alguns podem ter interesse histórico no assunto, mas nenhum pesquisa a prática para melhorar o tratamento de seus pacientes atuais.
A resposta novamente pode estar na disputa entre paradigmas. Nas artes visuais, os paradigmas coexistem. Enquanto artistas realistas consideram um avanço artístico o desenvolvimento de técnicas renascentistas como o chiaroscuro, a perspectiva, a representação anatômica – escolas de paradigmas modernistas não concordam que estas inovações são necessariamente objetivos a serem alcançados. Os modernistas valorizam outro conjunto de princípios. Ainda assim, mesmo artistas que trabalham dentro de paradigmas modernistas são capazes de assumir temporariamente valores realistas para avaliar e apreciar a arte renascentista.
É diferente com o conhecimento científico. Paradigmas concorrentes são avaliados e escolhidos por uma comunidade com os mesmos valores. Os valores que a comunidade de cientistas em geral usa para “escolher” o paradigma são: a teoria prevê eventos acertadamente? resolve mais problemas que seus concorrentes? concorda melhor com observações empíricas? entre outros. Isto é, toda a comunidade científica concorda em denominar as mudanças históricas como progresso, pois no ponto de vista da maioria dos cientistas, o novo paradigma adotado funciona melhor do que seu antecessor.
Em outras áreas do conhecimento, esse nem sempre é o caso. Os estudantes de qualquer campo artístico não aprendem lendo livros-texto. Não há manuais que resumam de forma breve, sistemática e precisa todo o conhecimento do passado; os estudantes precisam ler os próprios clássicos de sua área. As diferentes soluções de cada escola artística (ou paradigmas artísticos) terão de ser avaliados pelo próprio estudante. Os museus servem como local de acesso a esse acervo para a comunidade de críticos e artistas, que, por bons motivos, é sempre muito reticente em utilizar a palavra “progresso” para se referir a formas de expressão.
*Teoria do flogisto é uma ideia do químico e médico alemão Georg Ernst Stahl, contemporânea ao renascimento. Segundo Stahl os corpos combustíveis possuíam uma matéria chamada flogisto, liberada ao ar durante os processos de combustão.