Cinema

Quando se pensa em algo tão plural e diverso como a existência humana, é difícil imaginar um elemento unificador comum à totalidade dos povos, independente dos aspectos sociais e vivências que os cercam, em todos os cantos do mundo. Apesar de a música, a arte e o futebol serem elementos muito presentes no cotidiano de grande parte das pessoas, ainda assim é complexo considerá-los como algo mais profundo que um ópio diário ou um elemento de fuga através dos sentidos e sentimentos. A religião possui tantas nuances e variações que sua mera existência enquanto conceito universal esbarra em suas próprias particularidades. Qual é, portanto, a linguagem universal à humanidade? Qual a canção que, quando tocada, faz dançar todos os nomes que existiram, existem e existirão sob o céu?
Um dos padrões mais fascinantes da natureza é o trabalho como força motriz para todo e qualquer progresso desenvolvimentista. Formigas e abelhas se distribuem e dividem-se em organizações centradas na força e na estruturação do ato de trabalhar. É somente assim que sobrevivem. Desde a pré-história, a humanidade desenvolveu-se e refinou-se social e tecnologicamente graças à evolução do trabalho. Trabalhar é, mais do que somente algo cotidiano, um elemento essencial para a sobrevivência na Terra. Não existe sobrevivência sem trabalho.
Curioso pensar, também, como não existe opressão surgida sem relacionar-se à divisão do trabalho. Toda forma de ataque e exploração é direta e inevitavelmente relacionada a um elemento estrutural causado em algum ponto pela exploração do trabalho. O racismo é herança dos modos de produção escravistas potencializados pelas Grandes Navegações, assim como o machismo e a misoginia patriarcal originam-se e perpetuam-se, segundo Friedrich Engels, desde a divisão doméstica do trabalho na pré-história. A homofobia surge a partir da predileção por um modelo de família cuja existência é voltada para a lógica de produtividade industrial.
Mais do que somente social, não há opressão que não possua um motivo econômico. Então, por que essas explorações ainda continuam tão presentes, uma vez que aqueles que a sofrem são profundamente mais fortes, numerosos e resistentes do que aqueles que lucram com esses malefícios, sentados em cima de uma estrutura assassina? E qual o valor social daquele que, enfraquecido e maltratado pelo tempo e pelo labor excessivo, não mais pode contribuir para o trabalho social? E quanto aos que não mais estão entre nós, qual valor possuem?
Quando se pensa nas coisas somente sob a ótica do valor, é inevitável enxergar tudo como algo passivo de um mero e oportuno descarte. De que vale uma ampla floresta cujas árvores ocupam um terreno que, se desmatado, poderia alimentar incontáveis pessoas? De que valem os falecidos que ocupam uma planície que, se inundada, servirá para gerar energia para todo um país? De que valem as vidas, os terrenos e as memórias que ousam entrar no inefável trilho do progresso? “O que chamam de progresso é quando o homem pega seu maldito dedo, aponta para a natureza e clama tê-la conquistado”.
Essa é uma frase dita por um dos moradores de Nazaretha, conjunto montanhoso de vales e planícies anteriormente chamado de Vale das Lamentações, onde pode-se escutar as lamúrias de todos aqueles que foram levados pela enchente e, não menos importante, onde centra-se a ação de “Isso não é um enterro, é uma ressurreição”, filme de 2019 dirigido por Lemohang Jeremiah Mosese. Realizador nascido no Lesoto, país enclave na África do Sul, e radicado na Alemanha, possui um cinema profundamente intrigante e autoral que se centra, além das noções de territorialidade e cultura, especialmente em metáforas bíblicas e em noções de martírio em relação aos seus personagens e narrativas. “Mãe, estou sufocando. Esse é meu último filme sobre você”, de 2016, já se apoia profundamente na Via Crucis como metáfora central para estabelecer uma relação transcendental entre maternidade, pátria e colonialismo.
Já em sua obra-prima de 2019, utiliza de uma centralização da noção cristã de martírio para relacionar as noções de ancestralidade e território, opondo-as à opressão econômica, apoiada na muleta do progresso que, em nome do futuro, destrói todo o passado e desidrata as possibilidades do presente. Interessante pensar em como Lemohang utiliza-se de pouquíssimos planos gerais para estabelecer as ações, preferindo os close-ups ou os planos médios que se aproximam através dos zooms, perpetuando os rostos de seus personagens e, consequentemente, suas emoções e vivências. Quando há um plano geral, atua muito mais para estabelecer os territórios selvagens, com a terra sempre ocupando um espaço diminuto no quadro em relação ao céu, o que parece nos dizer que, além de universal, trata-se de um acontecimento que transcende as meras noções de geografia, influenciando na essência do que é ser humano e em sua consequente ligação espiritual com o caminho que perpassa todos aqueles males.
A centralidade dos planos detalhes e o uso de lentes mais abertas, aliada à proporção de tela próxima a um 4:3, cria um mundo, ainda que possua traços culturais e geográficos muito característicos do Lesoto e de seus habitantes, cujas nuances e idiossincrasias poderiam pertencer a qualquer um dos cantos do mundo. A luta de Mantoa, uma anciã brilhantemente interpretada pela mágica Mary Twala, contra um lobby empresarial gigantesco poderia tranquilamente ser transportada para o cerne de “Aquarius”, de Kléber Mendonça Filho, assim como o drama da expropriação perante uma enchente pode ser pensado também sob a ótica da obra literária “O chão sobre as águas”, da escritora goiana Simone Athayde. Para além de sua construção magistral e da valorização da cultura e dos valores locais, a força da obra de Lemohang Jeremiah Mosese está em sua universalidade, em especial ao tratar o não pertencimento como uma questão inerentemente humana.
Em uma obra desse calibre e com uma delicada temática, em especial ao ser protagonizada por uma personagem idosa, é tentador abandonar a estética em detrimento de um teor social pasteurizado ou, pelo contrário, realizar algo socialmente abominável ao olhar somente para a estética. Lemohang, entretanto, é brilhante ao compor os planos de uma forma não somente a descrever muito bem os espaços com suas panorâmicas, mas especialmente ao controlar muito bem o que está em foco e o que está desfocado. Destaca-se como os funcionários da empreiteira, sempre responsáveis por destruições e ruídos externos, não somente jamais tem seus rostos mostrados, como nunca aparecem sequer em foco nos planos, reduzindo-se a meros borrões amarelos. Ainda mais fantástico é como os planos servem de holofote para a oralidade, ponto central da obra, simbolizada pela figura do Narrador e de seu instrumento musical, aflorada por diálogos e monólogos fantásticos que poderiam tranquilamente saírem de livros de poemas.
Assim como, comumente, esperamos que um filme nos guie rumo a uma resolução narrativa, aguardamos da vida a inevitável chegada da morte. Mas e se ela não for o fim? E se todas as pessoas que cruzamos pelo caminho e que não mais podemos tocar nos guiam e apoiam ao longo de toda a caminhada? E se a ressurreição for não através da carne, mas através do martírio cujo caminho serve de inspiração e resistência para as gerações futuras? Assim como Mantoa nunca esteve viva em toda a obra, o Lázaro de “Isso não é um enterro...” não é ressuscitado pelo Messias, mas sim pela noção de coletividade que alimenta todos que o cercam e que, inspirados em sua dança e na luta de sua mártir, avançam rumo à morte certa, mas que é o único caminho através do qual podem permanecer vivos. “Nós acabamos onde começamos. E recomeçamos tudo de novo. Com novos sonhos, novas esperanças, novas ambições e perspectivas. Quem sabe talvez até com um novo Deus?”
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Pensar em humanidade é, sobretudo, pensar em dicotomias. Sejam sociais, linguísticas ou econômicas, as bases que sustentam tudo o que conhecemos existem graças ao fato de que somos, enquanto humanos, seres polarizados. Aguardamos pela chegada da noite enquanto nos revigoramos sob os últimos raios de Sol. Queimamo-nos com o toque do gelo e nos refrescamos com um gélido líquido que rasga nossa garganta. Choramos de amor e rimos de ódio. Ansiamos desesperadamente por desbravar o desconhecido quando a beleza do excessivamente conhecido não nos causa nada além de desespero. Organizamo-nos socialmente entre oprimidos e opressores, ainda que essa esteja muito longe de ser uma escolha voluntária. E, acima de tudo, ansiamos por jamais precisarmos escutar a insuportável voz interior que nos sussurra no ouvido todos os dias, através de todas as polaridades.
Enquanto seres sociais e evolutivos, a mais significativa dicotomia para o nosso desenvolvimento aparenta ser, simultaneamente, o desenvolvimento da linguagem e a ocupação dos espaços vazios. Criação e êxodo. De nada adianta vivermos próximos se somos incapazes de linguisticamente nos compreendermos, e de nada adianta entender as dores do próximo se, além do horizonte, existem possibilidades em demasia para que não as desbravemos e convivamos com novas dores de outros próximos. Conforme a evolução tecnológica da humanidade tornou e torna cada vez mais ínfimas as distâncias, mais lotados os antes vazios espaços e mais refinada e universal a linguagem, mais perde-se a noção da importância que a voz interior possui em nossa vivência.
Conforme o primário torna-se sofisticado e o refinado retorna ao primário, há cada vez menos espaço para a solidão em seu sentido literal. Ainda que se busque repousar por meros dois dias, sejam eles úteis ou inúteis, a âncora de nosso novo e admirável mundo nos notifica sobre o quão necessária se faz nossa presença, nosso convívio e, sobretudo, nossa voz. Em uma era onde a vox populi é banalizada, o quão privilegiado é alguém que pode se dar ao luxo de manter-se em silêncio? Como permanecer impassível quando todas as seduções nos sussurram aos ouvidos, pedindo e clamando por nossa voz? O pensador Gilles Deleuze nos disse que, nas sociedades contemporâneas, os instrumentos de controle e opressão, ao invés de reprimir nossa voz e silenciar-nos, nos levam à expressão ininterrupta e incessante, retirando de nossa existência até mesmo a mera possibilidade de não termos nada a dizer.
Capitalismo torna-se inefável e supera até mesmo o fim do mundo, através de sua própria concretização, pois torna a voz exterior infinita enquanto, simultaneamente, sepulta a voz interior. E existe símbolo maior desse modo de organização socioeconômica e síntese dos fenômenos de criação e êxodo do que a selva de concreto onde sonhos são realizados? Enquanto um elemento espacial e multicultural, poucas cidades no mundo foram tão pensadas sob o escopo cinematográfico como Nova York. Seja por autores como Sofia Coppola, John Cassavetes, Spike Lee ou Abel Ferrara, o centro cultural do império americano é, além de tudo, a Roma de nosso tempo: para onde todos os caminhos levam e de onde as maiores barbáries saem. Por que, então, em meio a esse oceano de corpos e vozes, estamos cada vez mais sós?
Pensando a Sétima Arte enquanto expressão da voz interior e síntese das dicotomias humanas, nunca houve, na humilde opinião desse que vos escreve, alguém mais talentoso a fazer cinema do que a belga Chantal Akerman. Aquela que mais belamente transformou nostalgia em melancolia, e vice-versa. Cineasta cujos filmes melhor expressam o que é ser humano em um mundo excessivamente globalizado e contraditório, estabeleceu News From Home, de 1976, a partir de um período em que morou em Nova York após a boa recepção de suas obras por parte de críticas e festivais europeus. Misto entre documentário e filme-ensaio, utiliza como mote central cartas de sua mãe e planos longos e estáticos da Babilônia de nosso tempo enquanto imagem e som unem-se para ressaltar a relação entre palavra e distância.
Através dos planos estáticos, longos e dilatados, Chantal ressalta a natureza enclausurada daquele ponto de vista, em especial devido à possibilidade de comunicação, ainda que haja um oceano entre nós. Mesmo assim, vivendo na Pólis definitiva e sempre tendo notícias de casa, sentimos os planos e a câmera cada vez mais distantes e sós. Mas não é isso algo raro em uma sociedade tão eloquente? Mas não seria justamente uma dicotomia demasiadamente humana transformar o raro em corriqueiro? O quão complexo e difícil para uma mãe é comunicar-se com uma filha tão distante somente através de cartas, sentindo a ausência todos os dias, mas entendendo que tal situação se deve à busca por um sonho ou, em menor escala, um objetivo? Somos seres contraditórios, ainda que nos convençamos diariamente do contrário.
Além de tudo, pensar nessa lógica é pensar no plano final da obra, que equivale à profundidade de uma série de estudos acadêmicos. Observarmos a Metrópoles afastando-se e boiando em meio às águas é, sobretudo, pensar em todos os símbolos sociais que nos cercam e, consequentemente, na vida que vivemos. Em todas as pessoas que cruzamos pelo caminho. Nas emoções que sentimos. No afeto que temos por aqueles que habitam e enriquecem nossos arredores. E, acima de tudo, pensar que, muitas vezes, distanciar-se nada mais é do que um muito bem-vindo até logo.
News From Home é, acima de tudo, uma celebração da vida humana. Vida essa que envolve distâncias, falhas de comunicação e, sobretudo, amor e voz interior. Ainda que haja um oceano a separar-nos, ainda que existam mil e uma pedras no caminho, ainda que falte coragem para externar aquilo que verdadeiramente é sentido. Mas não é a voz interior aquela que verdadeiramente nos representa? Não é nos breves intervalos de silêncio que verdadeiramente nos sentimos vivos? Vivemos porque amamos e, especialmente, por termos uma casa para eternamente retornar. Ainda que Chantal, em seu primeiro trabalho cinematográfico, tenha explodido sua casa, enquanto viva e em atividade, sempre pôde voltar para seu lar, uma vez que a morada são as pessoas que encontramos pelo caminho, e não as paredes que insistem em nos enclausurar.
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Diogo Alves
A história do cinema é um eterno gênese que se confunde com sua própria busca por aceitação. Entendendo-se como arte qualquer expressão que, acima de tudo e essencialmente, possua existência e experiência estética, uma pintura, uma escultura, um poema e uma peça teatral não possuem qualquer obrigação social, moral ou intelectual a não ser meramente a de exercer uma jornada estética. Portanto, qual é a existência artística de uma inovação tecnológica fruto da revolução industrial cujo objeto final, o retrato fidedigno de um acontecimento, em nada se diferencia daquilo que enxergamos de olhos abertos?
Qual o valor estético de um trem, totalmente em foco, chegando a uma estação no final do século XIX, retratado como mera realidade? Curioso pensar, todavia, que atualmente, alguns dos maiores estetas cinematográficos se baseiam na mera representação do real como ele de fato é. O quão insignificantes são pequenas ficções científicas que em pouco se diferenciam dos teatros de marionetes, vaudevilles e bordeis destinados às classes baixas francesas no início dos anos 1900? Interessante pensar como, em contrapartida, o maior diretor estadunidense das últimas quatro décadas se apropria justamente da dimensão mais circense e primitiva da Sétima Arte. Qual a legitimidade de uma arte que, ao aprofundar-se minimamente além daquilo que nossos olhos testemunham ao encontrarem-se abertos, foi responsável pelo ressurgimento de inúmeras manifestações opressivas em celuloide, louvando valores abjetos como o racismo e o colonialismo?
Para além somente do valor de utilidade, incabível ao pensar-se em arte, algo que o cinema demorou a provar-se como, destaca-se também como a repetição levou à falta de atratividade de algo que capta, para além dos rostos e corpos tão distantes daqueles que observamos em nosso dia a dia, lugares que nunca veremos ou presenciamos em demasia. Jean-Claude Carrière, na introdução ao fantástico “A linguagem secreta do cinema”, nos conta sobre como os colonizadores franceses, no pós-Primeira Guerra Mundial, levavam o cinema à porção norte da África como uma forma de mostrar a mais nova invenção industrial europeia e como uma forma de ressaltar os valores coloniais e raciais desse povo cujo toque é tão destrutivo como o de Midas é reluzente.
Ressalta-se, entretanto, que devido aos valores islâmicos de boa parte dos habitantes do norte africano e, consequentemente, o fato de não poderem representar a face e a forma humana, criações divinas, os levavam a fechar os olhos por completo assim que a luz do projetor tocava a superfície branca da tela. Ainda que tardiamente, o cinema desenvolveu uma base linguística muito sólida, eternamente em movimento e que ajudou a consolidá-lo como expressão artística. Conceitualmente, uma das primeiras funções da linguagem que se aprende é que se não há receptor, todo o resto é em vão. Entretanto, cinema é mais do que mera linguagem. É arte.
E como arte, não há necessidade alguma além da existência estética. O quão bonita é uma paisagem vista através das pálpebras fechadas, com a pele atravessada pelos raios solares, composta pela luz invasora e pela imaginação fruto dos sons arredores? Em nossos sonhos, quantas vezes nos enxergamos presenciando as mais maravilhosas ou sombrias realidades somente para acordarmos e ou nos decepcionarmos ou nos vermos vivos novamente, por mais um longo dia? Não estariam aqueles povos que, ao recusarem-se a ir contra os mandamentos de Deus, mostrando-nos o verdadeiro caminho e a melhor forma para experienciarmos o cinema e a arte?
Escrevo essas palavras pois creio que a Sétima Arte se encontra em uma de suas piores crises estéticas e de linguagem do século XXI. Um filme perde toda a sua magia se, em um universo ficcional, a mais banal das leis da física é desrespeitada. Um personagem perde todo seu carisma se toma uma decisão que fuja um milímetro da longa e retilínea calçada da lógica. Um diretor torna-se um canalha quando um de seus filmes possui uma mensagem (ou não possui mensagem alguma) que desafie minimamente o mais comum dos sensos e o melhor dos costumes.
A profusão e a perpetuação de imagens ao nosso redor não só substituiu o mundo em que vivemos, mas tornou-nos insensíveis e, acima de tudo, insuportáveis. Muito porque nossos olhos estão tão abertos que não possuímos mais pálpebras, mas somente uma membrana tão cristalina como as imagens digitais geradas pelas câmeras cinematográficas que possuímos hoje em dia, e que lentamente estão esvaziando a estética cinematográfica e a maravilha da surpresa. Pedaços de pele esses que, assim como os personagens dos filmes moralistas e demasiadamente bonzinhos que assistimos, recusam a tocarem-se. Luís Buñuel, parceiro recorrente de Carrière, era um grande visionário, mas não creio que em seu “Cão Andaluz” ele imaginava que uma navalha poderia abrir um olho de uma forma tão irrecuperável como a que nos encontramos hoje.
Não creio que se trata de um mal maniqueísta, e muito menos de um problema que requer solução. Defendo somente que a falta de sensibilidade deva ser tratada com uma busca diferente. Com um fechar de olhos. Com um cinema cujas imagens sejam tão cristalinas como os raios de sol que invadem nossas pálpebras cerradas. Com um cinema cujos cenários sejam tão nítidos como as silhuetas sombrias e noturnas de magníficas montanhas recortadas por um céu nublado. Por um cinema com histórias e mensagens tão louváveis como um casal de bandidos juvenis que aprendem a se amar em uma rodovia em meio a assaltos. Por um cinema, como teorizado por Andrei Tarkovski, que se rememore da ausência de regras em sua própria lógica de funcionamento existencial. Por um cinema, como disse Stan Brakhage, um dos maiores cineastas experimentais de todos os tempos, onde pode-se “imaginar um mundo vivo, com objetos incompreensíveis e reluzente com uma infinita variedade de movimento e inumeráveis gradações de cor. Imagine um mundo antes do princípio ser verbo”.[1]
Mais do que somente antes do princípio ser verbo, por um cinema onde tudo é inconsequente e inesperado. Onde histórias e verossimilhanças são irrelevantes, pois o que valem são as emoções que escutamos e sentimos com nossos cristalinos olhos fechados e nossas almas abertas. Abel Gance já dizia que “o cinema é a música da luz”, então que não tenhamos medo de dançar diante da luz e bailar para a sombra. Arte não é vida real, e o cinema é arte. As vinte quatro fotogramas por segundo são alquimia, e acima de tudo, experiência. Irreal, real ou surreal, o que vale a pena, caro leitor, é estar aberto a experienciar as imagens em movimento e deixar-nos guiar por sua magia.
[1] Stan Brakhage, “Metáforas da Visão”. Traduzido pelo autor do original em inglês

O curta conta sobre confrontos entre bandeirantes e indígenas Xerentes

Sonhar é, então, uma das principais maneiras de escapar da realidade e manter-se calcado nessa dimensão ideal.

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Filme não se compromete com moralismos, e decide ir até o fim na sanguinolência e horror

Das 13 estatuetas, Oppenheimer ganhou sete, incluindo a categoria de melhor filme

Um dos mais básicos pilares do pensamento filosófico é a existência de dimensões éticas e morais referentes à existência em sociedade. Enquanto a moral representa hábitos e costumes coletivos, ética diz respeito à adaptabilidade reflexiva da consciência diante da moral, podendo ir ao encontro ou de encontro a ela a depender da situação. Ao longo de todo o cotidiano histórico, ética e moral se digladiam, muito por conta de que, na majoritária parcela das situações, os defensores da moral são as pessoas mais antiéticas presentes em todo o globo. E como o cinema é uma das formas de pensamento filosófico, os domínios da Sétima Arte não estão alheios a esse debate.
Desde pavorosos debates morais cinco séculos atrasados sobre a necessidade do uso da nudez no cinema em pleno século XXI (ora, caro leitor, se o artista se deixar levar pelo teor de utilidade em sua produção, nenhum filme, livro, série ou pintura jamais será feito) até a linguagem cinematográfica como um campo sedutor para a antiética, discute-se sobre o papel do diretor não somente como artista, mas também como pensador. Como esquecer que não somente Jean-Luc Godard dizia que um traveling é uma escolha ética, mas também que Jacques Rivette condenou efusivamente Gillo Pontecorvo pelo uso desse mesmo movimento de câmera em Kapò, filme sobre uma mulher judia enviada a um campo de concentração? Dirigir um filme é inevitavelmente direcionar e enviesar o olhar de milhares de pessoas para um tema de uma forma específica e, logo, requer ética e responsabilidade.
Ética e lucro, entretanto, podem caminhar juntos? O cinema, arte inerentemente industrial, e seus produtores estão mais preocupados com seus bolsos enchendo ou com serem histórico e eticamente responsáveis ao retratarem uma catástrofe monstruosa e humana? Creio que a existência e ampla premiação a filmes abomináveis como A Vida é Bela, o Menino do Pijama Listrado, entre outros, já é prova o suficiente que, quando se quer ganhar dinheiro, mais vale cuspir na história de um genocídio através de um olhar divertido e redutivo (quase negacionista) e desumanizador do que algo propriamente desconfortante. Melhor ainda quando é puramente um uso espetacularizado do sofrimento. Choro vende, ainda mais quando dele brotam a borbotões lágrimas europeias e brancas.
Dessa forma, quando busca-se retratar artisticamente um acontecimento tão triste, lamentável e feito pela faceta mais cruel do ser humano, há de se ter o mínimo de consciência de como olhar para isso. Nesse ponto, em especial nessa escolha em específico, reside o melhor de A Zona de Interesse. Premiado em Cannes, indicado ao Oscar 2024 e dirigido pelo ótimo Jonathan Glazer, a obra não faz qualquer questão de relembrar o espectador sobre as generalidades de que o filme se trata. Espera-se que aquele que aceite o desafio de assistir à obra tenha plena consciência do que foi o Holocausto, o que era Auschwitz, o contexto histórico da Segunda Guerra Mundial e tenha consciência acerca da bestialidade dos nazistas.
Mais do que isso, trata-se de um filme sobre especificidades, pequenos gestos e persistências que permitiram com que seres humanos vivessem bucólica e comumente impunes diante de uma das maiores e mais sádicas tragédias dos tempos recentes. A inserção do conflito como sendo a forçada saída da família nazista de Auschwitz para que o pai pudesse escalar ainda mais no exército do reich também é de uma precisa crueldade que só nos demonstra o quão fútil é o valor da vida humana a depender da nacionalidade, etnia, sexualidade, credo religioso, entre outros. A depender de alguns desses fatores, sequer se merece o nobre título de intitular-se ser humano. Acompanhar imageticamente não os agredidos, mas sim os agressores, é uma fenomenal escolha para nos mostrar que não somente eram pessoas reais (monstruosas, abomináveis, inefavelmente condenáveis, e ainda assim seres humanos), mas também para nos colocar na posição de agressores que vivem normalmente enquanto, ao nosso redor, seres humanos são massacrados.
Digo imageticamente pois, em termos sonoros, a obra é completamente diferente. Robert Bresson, em suas Notas para o Cinematógrafo, dizia que enquanto a imagem é o domínio do surreal, do onírico abstrato, é o som quem retoma o teor de real para o filme. Enquanto a fotografia aqui se utiliza de um esquema imagético quase de câmera de segurança, com a simultaneidade gravada das ações, alta profundidade de campo, lentes grande-angulares e a luz estritamente natural gerando imagens que remetem a uma performance artística museográfica e asséptica, a humanização presente na construção sonora sempre se certifica de nos relembrar que aquele distanciamento bucólico e chapado da imagem possui uma razão profundamente sombria e dolorosa.
Não há qualquer espaço para fuga desse simulacro demasiadamente real, e qualquer sinal de humanidade ou está nos sons do outro lado dos muros e dos arames farpados, ou então é fotografado em negativo, em uma escolha visual primorosa. Não há espaço para bondade lá, e quando ela existe, deve ser representada como a antítese da imagem convencional. Trata-se de um cotidiano abominável justamente por ser profundamente simples, e por nos lembrar que catástrofes como essas, onde assassinos escolhem roupas das vítimas para suas esposas e brinquedos para seus filhos, não só podem voltar a acontecer como já, nesse exato momento, acontecem diante de nossos próprios olhos. A cena do casaco de pele sendo escolhido pela abominável personagem de Sandra Hüller é um tapa na cara e um soco no estômago quando vemos um exército genocida, atualmente, posando para fotos com lingeries de mulheres estupradas, brinquedos de crianças assassinadas e bengalas de idosos chacinados por um povo eleito. A História infelizmente está condenada a repetir-se, e a violência é demasiadamente banal e espetacularizada em nosso dia a dia para que algo possa ser feito.
Por mais que o filme seja primoroso em suas escolhas basilares, é justamente no fortalecimento de sua dinâmica cotidiana que os problemas passam a se tornar mais presentes. As escolhas da decupagem mostram-se muito repetitivas mesmo se tratando de um filme sobre cotidiano (quase toda cena é resolvida em plano geral, contraplano também mais aberto e um plano mais próximo), e o teor repetitivo das ótimas atuações, que acabam, na mesma forma que funcionando para mostrar-nos aqueles personagens como personas que poderiam facilmente ser qualquer outra pessoa, tornam-se também elementos dissonantes do meio para o final e abraçam um sadismo que vai totalmente de encontro a toda a ética representativa básica que o filme nos mostrava.
E o que dizer da cena final e das “metáforas”, então? Glazer é um ótimo diretor justamente por como, desde o início de sua carreira, estabelece obras com uma consciência estética muito pessoal e sem torná-las cosméticas, tratando sempre sobre tabus e personagens em situações sensíveis de forma muito humana, como nos mais “convencionais” Sexy Beast e Birth, ainda que sua abordagem seja muitas vezes, como no extraordinário Sob a Pele, a mais performática, antinaturalista e distante possível. O que passa na cabeça de alguém como ele achar de bom gosto colocar metáforas com porcos e o forno da bruxa de João e Maria em um filme sobre o Holocausto? Um dos grandes méritos da obra é justamente não ser didática, mas justamente em suas buscas por uma transcendência moralista (o que por si só já é um absurdo) que as coisas se tornam um beabá e sádicas em um nível quase tão ruim como as obras que citei anteriormente.
Li alguns comentários e críticas que acusavam o filme de ser uma negação do Holocausto e acho isso de uma falta de noção e analfabetismo cinematográfico abissais, especialmente ao compararmos A Zona de Interesse com outras obras sobre o genocídio. Ainda mais por ser um filme sobre especificidades e pequenos gestos, e não sobre closes em rostos e lágrimas. Trata-se, inclusive, de um olhar muito mais desconfortável sobre um tema que precisa ser retratado de forma desconfortável, ainda mais quando nós somos colocados no lugar dos agressores, visto que somos contemporâneos a inúmeros genocídios e fazemos muito pouco ou rigorosamente nada (isso quando algumas pessoas não prestam solidariedade aos genocidas, saem com suas bandeiras nas ruas, etc.).
É inacreditável, entretanto, como as imagens reais e atuais de Auschwitz são usadas não como uma forma de relembrar-nos da tragédia e da banalidade do mal, mas sim de dar uma certa moral redentora a um personagem abominável e literalmente um dos comandantes das forças de Hitler. Um vômito cinematográfico não era tão falso quanto o de um dos chefes de esquadrões de morte na Indonésia em O Ato de Matar, de Joshua Oppenheimer. Por mais que possa ser a reação de alguém percebendo que todo esse simulacro frio e asséptico é, na verdade, algo demasiadamente real, nada justifica um uso tacanhamente mesquinho de uma montagem alternada. O Código Hays, mesmo em um filme de “fora de Hollywood” e quase seis décadas após seu fim, ainda vive.
Dessa forma, Zona de Interesse é um dos filmes recentes mais bem sucedidos moralmente falando sobre a tragédia que foi o Holocausto, justamente por como subverte nossa noção básica de protagonismo e coloca-nos na mais desconfortável das posições. Quase a totalidade daqueles que se intitulam cidadãos de bem na atualidade estariam do lado de fora dos muros, vivendo normalmente em meio aos gritos e à fumaça no céu. É na dimensão ética, todavia, que residem as problemáticas da obra, justamente por conta de muitas das decisões amarradas de seu realizador, também pela forma como se limitou a alguns dos conceitos mais ficcionais e estadunidenses do cinema.
Na vida real genocidas raramente são punidos, não tem catarses espirituais e muito menos vomitam quando percebem as consequências de suas ações. Por mais amoral que pareça, manter um personagem abominável impune em uma obra de arte pode ser, a depender das circunstâncias, a coisa mais ética a se fazer. A banalidade do mal reside justamente no quão cúmplice um artista se propõe a ser, e o fato da arte ser o domínio das reflexões humanas faz com que, enquanto artistas, o lema de jamais perdoar para jamais esquecer deva ser bem compreendido. Lamentavelmente, enquanto sociedade, esse lema foi abandonado há muito, tanto que tal tragédia se repete diante de nossos próprios olhos, e escolhemos direcionar nossa vista para as flores de nosso jardim e não para as vidas ceifadas fora dos muros e arames farpados de nossos confortabilíssimos simulacros.

Diogo Alves
Assim como todo e qualquer fenômeno cultural, o surgimento de Hollywood e do cinema estadunidense é inseparável do contexto histórico vivido internamente no país no início do século XX. Desde a obsessão de Thomas Edison pelo controle de suas patentes até sua disputa com empresários que buscavam uma nova forma de investir, a história da Sétima Arte na parte norte da América é, inevitavelmente, uma história de disputas econômicas e corridas por inovação tecnológica.
Com a chegada desses empresários e a busca pelo desbravamento de até então uma forma barata de entretenimento para as classes mais baixas, uma série de plantações de laranjas à costa leste dos Estados Unidos se tornou o grande polo produtor de cinema da história. Em Los Angeles, os vaudevilles, pequenos teatros dominados pelos franceses, munidos das criações dos irmãos Lumiére, logo viriam a dar espaço para algo um pouco mais coeso, linguístico e inerentemente americano. Nascia uma Metrópoles, ainda que um pouco distinta da imaginada por Fritz Lang.
Apadrinhado pelos empresários devido aos seus ótimos curtas-metragens e atento às criações cinematográficas mundiais, possibilitadas pelo fato do cinematógrafo, criação dos Lumiére, não ter sido patenteada, mas sim amplamente fabricada e vendida, D. W. Griffith passa a trabalhar em seu longa-metragem fatalmente mais conhecido. Partindo da aglutinação de suas próprias inventividades linguísticas com as de outros cineastas ao redor do globo, bem como de referências épicas como os italianos Quo Vadis? e Cabíria, o autor cria o marco inicial da linguagem cinematográfica que até hoje se faz presente nas produções hollywoodianas. Surge assim, em 1915, O Nascimento de uma Nação.
Permanecendo por muitos anos como um marco na cultura estadunidense, trata-se de um filme tão influente que foi exibido à época na Casa Branca pelo presidente Woodrow Wilson, que o classificou como “a história contada por raios”. Além disso, o uso maniqueísta e desumanizador da linguagem cinematográfica por parte de seu diretor foi feito de uma maneira com que a obra se tornasse responsável, em conjunto com as Jim Crow Laws, pelo ressurgimento da Ku Klux Klan e, consequentemente, por massacres públicos e incêndios às habitações da população negra nos Estados Unidos. Tal qual um verdadeiro acontecimento histórico, o contexto da expansão do cinema na América se revela como um evento sombrio e algo muito distante das idealizações quanto a amigáveis disputas entre empresários preocupados com o avanço da arte. Na História, caro leitor, não há espaço para idealismos.
Com essa pequena anedota histórica, percebe-se que, por se tratar de uma forma de arte que nasceu em pleno capitalismo industrial, a produção cinematográfica é inseparável do lucro e do fazer político que rege as relações econômicas, essencialmente dependentes de exploração e hierarquizações centradas em preconceitos. Existe algo mais simbólico do que Griffith, que lançou A Corner in Wheat e The Unchanging Sea, dois curtas-metragens que abordam luta de classes, alienação e exploração, e que posteriormente passou a vida toda fazendo trabalhos como Intolerância e Lírio Partido para se redimir, seja mais conhecido e estudado por sua abjeta obra? Existe algo mais americano do que Oscar Micheaux, romancista, historiador e primeiro cineasta negro da história, ser tratado como um mero asterisco ainda que tenha produzido mais de 40 filmes de forma independente, entre os quais obras-primas como Dentro de Nossos Portões, de 1920, resposta de um homem negro ao racismo de Nascimento de uma Nação?
Nesse cenário, buscando limpar a sujeira para debaixo dos panos e manter certos temas distantes da produção cinematográfica e das mãos sujas de sangue dos grandes estúdios do cinema, surge o Código Hays no início dos anos 1930, perdurando quase até os anos 1960. Com o crescimento do público nas salas de cinema, os frequentadores desses espaços deveriam ser mantidos sob cabrestos proporcionados pelos filmes de modo que não pudessem observar, na tela, a realidade que se desenrolava ao seu redor. Assim como a linguagem griffithiana, o código servia para domesticar completamente o olhar e confortar o pensamento do espectador frente ao cinema.
Partindo de uma decisão de 1915 da Suprema Corte que limitava a liberdade temática nos filmes, o Código foi um conjunto de normas comportamentais e temáticas impostas pelo órgão dos distribuidores e produtores quanto às películas, onde temas como sexualidade, drogas, raça e qualquer elemento que pudesse “atender contra a moral pública” seriam removidos das obras. Aprofundou-se uma censura dos estúdios em relação aos seus próprios artistas e, em paralelo a isso, surge o studio system e o star system, mecanismos contratuais que propiciaram uma época de ainda mais exploração às imagens dos astros, lucros exorbitantes, filmes ingênuos e descolados da realidade e salas cada vez mais lotadas. Inaugura-se, assim, a Era de Ouro de Hollywood.
Entretanto, conforme a história se desenrolava em uma outra grande guerra global, os filmes não mais poderiam ser ingênuos. Em tempos em que digladiavam países em lados, com exceção da União Soviética, não tão rivais assim (no Eixo, se encontravam três países que defendiam variações do abjeto nazifascismo e, nos Aliados, dois Estados igualmente imperialistas e genocidas nas periferias do capitalismo [Churchill e a fome em Bengala, os Estados Unidos e suas leis de segregação que inspiraram o próprio Hitler...]), as obras deveriam, ainda que cerceadas pelo Código Hays, estar à altura das sombras de seu tempo. O cinema hollywoodiano deveria também ser uma resposta tanto ao experimentalismo construtivista dos filmes soviéticos de Sergei Eisenstein, Dziga Vertov, Lev Kuleshov e Oleksandr Dovzhenko, que conseguiam alinhar linhas de vanguardas acadêmicas com grandes públicos no país nos primeiros anos pós-Revolução de 1917, quanto às propagandas nazistas de guerra, chefiadas por Leni Riefenstahl na Alemanha.
Para além somente de um zeitgeist de completo niilismo, dois fatores primordiais efervesciam nos Estados Unidos. Nos cinemas, os diretores refugiados da Alemanha nazista, como Fritz Lang e Michael Curtiz, faziam obras que abordavam nas entrelinhas os meandros do código e subvertiam-no, usando-se das sugestões e do subtexto para criar obras profundamente políticas, sombrias e antiguerra, popularizando assim o film noir. Além disso, na política, observava-se o fortalecimento de uma União Soviética que seduzia os trabalhadores de todo o mundo com suas melhores condições de vida, bem-estar e trabalho, um salto produtivo incomparável e um fortalecimento popular exponencial após o fim da 2ª Guerra, onde o exército vermelho atuou como um dos componentes chave para a libertação da Europa do nazismo.
Logo, com esse cenário externo, fortaleceu-se também o anticomunismo na terra do Tio Sam, e os estúdios se prontificaram a auxiliar na propaganda estadunidense de caça às bruxas interna e valorização do estilo de vida americano.As obras saíram de tons como os de Ernst Lubitsch, outro diretor refugiado, em Ninotchka, obra-prima de 1939 em que Greta Garbo interpreta uma espiã soviética e é uma clara sátira a seu estilo de vida nacional, e passaram para a atemorização geral partindo do ponto de que qualquer um pode ser um comunista, em especial a partir do começo dos anos 1950. Tudo isso agindo dentro do Código Hays, que censurava também produções que fossem minimamente divergentes quanto à política hegemônica no país.
Em meio a tantas efervescências políticas e a tempos em que, apesar da propaganda, o estadunidense médio se via cada vez mais distante dos símbolos de heroísmo de seu país, urgia a criação de obras que abordassem figuras excluídas dessa sociedade. Cada vez mais comuns eram os filmes protagonizados por gângsteres, ladrões e espiões amorais, mas devido ao Código, sempre finalizavam com um punitivismo didático e com um final que deixasse estampado para a audiência que qualquer estilo de vida que desafiasse o american way of life não seria tolerado.
Dessa forma, em 1948, Nicholas Ray, que viria a se tornar um dos maiores diretores da história de Hollywood e aquele que melhor representa as nuances e contradições da sociedade americana, lança Amarga Esperança. Adaptação do romance Thieves like Us, de Edward Anderson, centra-se no nascimento do amor entre Bowie (Farley Granger), um assaltante de bancos, e Keechie (Cathy O’Donnell), uma jovem que o acompanha em sua fuga. Para além de um dos melhores filmes de estreia de todos os tempos, trata-se da obra que propulsionou características marcantes ao autor que melhor alinhou os valores estéticos do cinema mudo com referências do cinema moderno, elaborando uma forma econômica e direta de contar histórias em conjunto com um romantismo clássico arraigado à decadência estadunidense.
Se o Código Hays não permitia que fossem abordados elementos de distinções de classes sociais, Nicholas Ray colocava o dinheiro como o catalizador de todos os conflitos de seu filme, bem como um elemento premonitório a alguma tragédia. Se o Código censurava toda e qualquer crítica ao cenário desolador que vivia o país, o autor filmava as faces de uma forma a igualmente ressaltar sua simultânea beleza e desesperança em close-ups exemplares, permanecendo-se atento aos gestos de seus personagens e à forma como aprendem a apaixonar-se um com o outro, sempre ocupando o mesmo espaço da tela, enclausurados em planos conjuntos, ainda que sejam contemporâneos ao romântico mal do século.
A subversão do código é tão latente em Amarga Esperança que, ao invés de Ray nos levar a pensar que aquele estilo de vida não compensa, nos certifica que viver às margens talvez seja suficiente. Suficiente justamente por conta de como, apesar de todas as circunstâncias que cercavam Bowie e Keechie, eles viveram uma utopia tão bela como a vida em si e tão breve como qualquer sinal de possibilidade real em meio ao capitalismo. Talvez, justamente pela força de sua mensagem, o filme foi banido em sua terra natal e somente anos depois passou a circular como um filme B na Europa.
O final, portanto, não poderia ser mais infeliz e condizente, com o fim do amor romântico estampado no rosto de alguém que nunca pode fazer nada além de apaixonar-se. Assim como em Juventude Transviada, Johnny Guitar, Delírio de Loucura e No Silêncio da Noite, Ray nos mostra que, apesar de todos os pesares e de todo o cenário desolador, amar vale tanto a pena quanto lutar por um futuro melhor, ainda que se morra tentando. Afinal de contas, “morrer como um homem é o prêmio da guerra[1]”.
[1] Racionais MC’s – Vida Loka, Pt. 2, referenciada também em outras músicas como Nuvem Negra, de Sant

Grade abrange produções regionais, nacionais e internacionais, incluindo indicados ao Oscar 2024 e premiados em grandes festivais mundiais

Uma tentativa de orientar o leitor com um breve painel de referências cinematográficas

Película de Martin Scorsese faturou os prêmios de Melhor Filme e Melhor Atriz

Nesta semana, a programação conta com diversos filmes, alguns com sessões gratuitas, e outros com ingressos a partir de R$ 5

O filme goiano Horizonte, cuja história se passa na cidade de Aparecida de Goiânia, foi indicado para a mostra competitiva da 16ª edição do Los Angeles Brazilian Film Festival (LABRFF), disputando a categoria de longas-metragens de ficção. Considerado um dos mais importantes festivais de cinema brasileiro no exterior, o evento será realizado entre os dias 23 e 27 de outubro, na cidade de Culver, na Califórnia, nos Estados Unidos.
Dirigido por Rafael Calomeni, Horizonte conta o drama do solitário Ruy (Raymundo de Souza), que mora em um barracão nos fundos da casa de seu irmão mais velho. Com a morte do irmão, seu sobrinho Juarez (Ronan Horta) passa a morar na casa com a esposa Sônia (Alexandra Richter) e a filha Sara (Pérola Faria). A partir daí começam os problemas de relacionamento de Ruy e seu sobrinho-neto Junior (Artur D'Farah), filho renegado por Juarez, com o restante da família.
O filme goiano tem produção e roteiro assinados por Dostoiewski Champangnatte e Lu Klein, e produção executiva de Cecília Brito. Além da participação no Los Angeles Brazilian Film Festival, o longa-metragem foi o grande destaque do Festival de Cinema de Vassouras, no Rio de Janeiro, ao conquistar quatro prêmios, incluindo Melhor Filme, Melhor Atriz, Melhor Atriz Coadjuvante e Melhor Direção.
Fomento à cultura
Horizonte é mais um projeto apoiado pelo Programa Estadual de Incentivo à Cultura – Goyazes, mecanismo de fomento do Governo de Goiás, gerenciado pela Secretaria de Estado da Cultura (Secult). A iniciativa consiste no financiamento de projetos por empresas privadas, em troca da concessão do benefício fiscal do ICMS.
Dessa forma, após a fase de inscrições, os projetos culturais são avaliados pelo Conselho Estadual de Cultura e homologados pela Secult. Aqueles que forem aprovados passam a fazer parte de um banco de dados on-line. Assim, a empresa que solicita a concessão do benefício pode escolher um projeto para financiar.
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