Cinema goianiense: entenda a trajetória das salas de rua e as perspectivas para o cinema Local
05 novembro 2024 às 17h56
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O cinema em Goiânia tem uma trajetória marcada por intensas transformações que refletem tanto a evolução da indústria cinematográfica quanto as mudanças sociais e culturais da cidade. Desde os primeiros cinemas de rua, nos anos 1940, até os dias atuais, com um panorama de festivais e produções independentes, a história do cinema goianiense é repleta de significados e significantes. Para entender esse processo, ouvimos dois dos maiores nomes da área: Lisandro Nogueira, professor de cinema na Universidade Federal de Goiás desde 1989, e o cineasta Ângelo Lima, um dos pioneiros da produção local.
Segundo Lisandro Nogueira, o Cine Santa Maria, localizado na Rua 24, foi o primeiro cinema da cidade, surgindo no coração do Centro de Goiânia, em um momento de crescente urbanização e modernização. “A cidade estava em crescimento e o cinema foi um dos pilares dessa transformação cultural”, lembra Lisandro. Esse cinema inaugurou uma nova era para a cidade, trazendo uma programação diversificada que começou a moldar o gosto e a cultura cinematográfica da população goiana.
Outro marco importante foi a inauguração do Cine Teatro Goiânia, que, além de exibir filmes, também trazia apresentações teatrais. Inicialmente, o local funcionava como um cine-teatro, espaço onde a cultura popular da cidade se encontrava com o cinema e o teatro. Esse espaço, ainda hoje conhecido como Teatro Goiânia, foi um dos centros culturais mais importantes de Goiânia durante as décadas de 1950 e 1960.
O Cine Goiás, que ficava na Avenida Anhanguera, quase na esquina com a Rua 20, também teve grande relevância. Lisandro recorda que o edifício foi demolido, mas sua memória permanece viva. Para ele, o Cine Goiás representava o auge da experiência cinematográfica na cidade até a década de 1970, quando o panorama do cinema local começou a se diversificar com outros cinemas que surgiram na cidade.
Entre os anos 50 e 70, muitos outros cinemas começaram a marcar presença em Goiânia. O Cine Casablanca, na Rua 8 (conhecido como Rua do Lazer), e o Cine Astor, localizado na Rua 9 com a Rua 3, eram alguns dos espaços de destaque. O público goianiense podia desfrutar de uma ampla gama de filmes, desde os populares faroestes americanos até os clássicos franceses e italianos. “Esses cinemas de rua eram os pontos de encontro da sociedade goianiense, os lugares onde as pessoas iam para ver e discutir filmes, mas também para se encontrar”, explica Lisandro.
Em um período em que o cinema era uma das principais formas de lazer da população, os filmes de Mazarope, que foram sucesso absoluto em Goiânia, ilustram a relação entre o cinema e o povo. “O público goianiense se identificava muito com filmes de personagens populares e de humor simples”, diz Lisandro. Ele ainda lembra que a programação cinematográfica da época era um verdadeiro fenômeno social, onde o cinema era mais do que apenas um passatempo, mas uma vivência cultural coletiva.
Nos anos 70, o cinema norte-americano passou a dominar a programação, com os filmes de Hollywood se tornando os maiores sucessos de bilheteira. A produção nacional, ainda em crescimento, não tinha a visibilidade que merecia, mas produções como as de Mazarope ainda estavam presentes, ocasionalmente. Esse cenário, segundo Lisandro, mudou ainda mais nos anos 80, quando a popularização dos shoppings centers e a ascensão dos cinemas multiplex começaram a impactar a dinâmica dos cinemas de rua.
A construção do Flamboyant Shopping, na época, o maior shopping da cidade, inaugurado em 1995, trouxe consigo a instalação de várias salas de cinema, o que acabou com a hegemonia dos cinemas de rua em Goiânia. Os cinemas de shopping começaram a dominar, enquanto os tradicionais passaram a fechar suas portas, um a um, até a década de 1990. “O mercado de cinema estava mudando, e com isso, a dinâmica da cidade também se transformava”, observa Lisandro.
O Cine Ritz, localizado no centro de Goiânia, é o único cinema de rua que ainda sobrevive, funcionando até hoje com programação regular, patrocinado pelo Sesc. Para Lisandro, este é um dos últimos bastiões da tradição cinematográfica de rua em Goiânia, mantendo viva a memória do cinema de outrora. “Ele é um símbolo de resistência”, afirma Lisandro, que vê no Cine Ritz uma espécie de âncora cultural, essencial para a manutenção da história cinematográfica da cidade.
Mas, como tudo na vida, o cinema também teve que se adaptar aos novos tempos. O advento do streaming e a popularização de plataformas como Netflix e Amazon Prime mudaram a forma como as pessoas consomem cinema. “A experiência no cinema nunca poderá ser totalmente substituída pelo streaming”, enfatiza Lisandro. Para ele, a experiência sensorial de assistir a um filme na sala escura, com a tela grande e a concentração total, é única. No entanto, ele reconhece que a pandemia de COVID-19 impactou fortemente essa vivência. “O público se afastou, as pessoas desaprenderam a ir ao cinema”, lamenta Lisandro.
Ângelo Lima, cineasta e produtor, compartilhou com a reportagem sua visão sobre o cinema em Goiânia e os desafios enfrentados ao longo dos anos. Natural de Recife, Ângelo chegou a Goiânia nos anos 1960 e logo se envolveu com a produção cinematográfica. Ele foi um dos fundadores do Centro de Cultura Cinematográfica – CCC, em Pernambuco, e em 1999, retornou à produção com os curtas Lembranças e Desaparecidos, que participaram do Fica (Festival Internacional de Cinema e Vídeo de Goiás).
Para Ângelo, os primeiros cinemas de Goiânia, como o Cine Goiás e o Cine Eldorado, foram fundamentais na construção de uma cultura cinematográfica local. “Esses cinemas não apenas exibiam filmes, mas também eram centros de troca cultural, um reflexo do próprio crescimento da cidade”, observa ele. O Cine Cultura, outro espaço importante, é um exemplo de como a cidade preservou, ao menos em parte, sua tradição de exibição de filmes de autor e produções independentes. Contudo, Ângelo menciona que a localização e questões de segurança do Cine Cultura dificultam o acesso de grande parte da população.
Em relação à produção cinematográfica local, Ângelo acredita que a qualidade técnica dos filmes goianos melhorou ao longo dos anos, mas ainda falta uma identidade mais forte. “A produção local é boa, mas falta algo mais ousado, mais criativo”, afirma ele. Para o cineasta, a cidade precisa de mais projetos que se distinguam e que representem a realidade goiana de forma mais autêntica. “Goiânia precisa de mais filmes que façam o público se sentir parte dessa história”, sugere.
Ângelo também comenta a importância de espaços como o Cine Ouro, que ele considera essencial para fomentar a produção local e garantir maior visibilidade aos filmes feitos em Goiás. Para ele, esses espaços precisam de uma programação regular e mais voltada para o cinema goianiense, para garantir que as produções locais se mantenham vivas na memória do público. “O Cine Ouro tem um potencial imenso, mas precisa de mais programação para se manter relevante”, acredita.
Os festivais de cinema em Goiânia, como o Festival de Cinema de Terror, ainda enfrentam o desafio de atrair mais público. “A frequência nos festivais é baixa, e isso precisa ser mudado”, afirma Ângelo, que vê esses eventos como oportunidades importantes para a troca cultural e o crescimento da cena cinematográfica local.
O impacto da pandemia de COVID-19, para Ângelo, foi profundo. “As pessoas desaprenderam a ir ao cinema, e isso afetou muito a dinâmica do público”, observa. Ele acredita que o retorno ao cinema tradicional não será fácil, especialmente porque muitas pessoas se acostumaram com a comodidade do streaming. Contudo, para Ângelo, a experiência de ir ao cinema ainda é algo irreplaceável. “O cinema tem um poder que nenhuma plataforma de streaming pode oferecer, a magia do coletivo, o impacto da tela grande”, afirma.
O futuro do cinema em Goiânia, segundo Ângelo, depende de uma maior conexão entre a produção local e o público. “É preciso criar uma identidade mais forte para o cinema goianiense”, afirma. Para ele, a cidade tem o potencial para ser um polo de produção cinematográfica, mas ainda falta um impulso para que isso se torne realidade. “O cinema de Goiânia pode e deve ser mais ousado, mais criativo e mais conectado com a sua gente”, conclui.
A trajetória do cinema em Goiânia é um reflexo das transformações da cidade ao longo do tempo. O legado dos cinemas de rua, as mudanças trazidas pelos multiplexes e o impacto das novas formas de consumo, como o streaming, formam um cenário complexo, mas cheio de possibilidades.
Para os entrevistados, Lisandro Nogueira e Ângelo Lima, a chave para o futuro do cinema em Goiânia está na preservação da memória histórica dos cinemas de rua e na busca por uma identidade cinematográfica local mais forte e mais conectada com o público. Se o caminho é árduo, ainda há muito a ser feito para que Goiânia se reafirme como um centro de produção e exibição cinematográfica de qualidade.
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