O historiador, advogado e político enfrentou a ditadura, não cedeu um milímetro às pressões e consagrou sua vida à defesa da sociedade democrática

Iram Saraiva: na redação do Jornal Opção: uma vida consagrada à defesa democracia | Foto: Jornal Opção

Iram de Almeida Saraiva nasceu em Goiânia em agosto de 1944, quando a capital era uma menina de 11 anos. Morreu em São Paulo, no Hospital Sírio-Libanês, onde se tratava de câncer, aos 75 anos (parecia mais novo; a mente, atentíssima). Ele teve um acidente vascular cerebral, mais conhecido pela sigla AVC.

Apaixonado pela história do mundo, do Brasil e de Goiás, decidiu cursar História na Universidade Federal de Goiás, em 1970. Dois anos depois, formou-se em Direito pela mesma UFG. Deu aulas de História e era um grande professor — crítico, bem informado e posicionado.

Em plena ditadura, quando era mais fácil ser membro da Arena, o partido do governo, Iram Saraiva decidiu se filiar ao Movimento Democrático Brasileiro, o MDB, o Manda Brasa. Aos 29 anos, em 1973, foi eleito vereador na capital. Eram os tempos difíceis do governo do general Emílio Garrastazu Médici. Mesmo assim, o jovem político não se calava, demonstrando ser um autêntico oposicionista. Era uma voz tão candente quanto articulada.

Iram Saraiva: amante de arte, dizia que o artista plástica Roos era um gênio da arte e da simplicidade | Foto: Jornal Opção

Aos 30 anos, em 1974, foi eleito deputado estadual. Era um tribuno dos mais atuantes — com uma oratória firme e qualificada. Era intimorato. Nunca demonstrou receio de criticar a ditadura e seus atos discricionários. Mas sua crítica nunca era necessariamente panfletária. Era candente, mas sempre bem informada, perceptiva. Como advogado, defendeu presos políticos. Deu aulas de Direito. Apresentava-se com uma pauta nacionalista — pró-estatização.

Em 1978, em pleno processo de distensão-Abertura, Iram Saraiva foi eleito deputado federal. Foi titular da Comissão de Relações Exteriores. Participou da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou o ensino pago no país. Ao lado dos irmãos Santillo — Adhemar e Henrique —, era um combatente em tempo integral da ditadura e apóstolo de uma sociedade inclusiva.

Em 1979, no governo do presidente-geral João Baptista Figueiredo, com a retomada do pluripartidarismo, Iram Saraiva filiou-se ao PMDB, sucedâneo do MDB — acrescentou-se o P de Partido. Em 1980, sofreu um grave acidente automobilístico, mas, mesmo sentado numa cadeira de rodas, jamais deixou de fazer política. Chegou-se a especular que o acidente poderia ter sido provocado pela ditadura, mas tudo indica que não. O fato é que ele não moderou suas críticas ao governo militar. Ao mesmo tempo, permaneceu um apóstolo determinado da Abertura política empreendida aos trancos e barrancos por Figueiredo — o presidente que dizia que, para redemocratizar o país, prenderia e arrebentaria.

Cida e o livro em que Iram Saraiva conta sua história | Fotos: Arquivo pessoal e Fábio Costa/Jornal Opção

(Numa conversa recente com um editor do Jornal Opção, Iram Saraiva contou a história de Franklin D. Roosevelt, que, de uma cadeira de rodas — sofreu poliomielite aos 39 anos —, governou os Estados Unidos por quatro mandatos, do início da década de 1930 a meados da década de 1940. “Não adianta reclamar”, disse. “É preciso seguir adiante.”)

Na Câmara dos Deputados e no Senado

Em 1982, quando alguns pensavam que se contentaria em ficar em casa, com sua mulher Maria Aparecida Silveira Saraiva, a Cida, cultivando a tristeza e lamentando a impotência de não mais poder andar, Iram Saraiva disputou mandato de deputado federal e foi eleito. Nesse ano, Iris Rezende, do PMDB, foi eleito governador ao derrotar Otávio Lage, o postulante do PSD, com uma votação avassaladora. Iram participou ativamente da campanha, como um de seus “generais” — não era mais “cabo” — eleitorais. Era uma das “estrelas” na batalha contra a ditadura dos militares e, também, de muitos civis.

Iram Saraiva quando jovem | Foto: Reprodução

Na Câmara dos Deputados, o que se esperava era um Iram Saraiva alquebrado, lamentoso. O que se viu foi outra coisa: um parlamentar ativo, crítico, participativo. Ele estudava detidamente os assuntos antes de manifestar qualquer opinião. Continuou como membro da Comissões de Relações Exteriores e da Comissão de Educação e Cultura.

Iram Saraiva assumiu o cargo de vice-líder do PMDB e participou ativamente da CPI sobre o Sistema Bancário e sobre Atos de Corrupção.

Em 1984, quando a ditadura estava em seus estertores, o deputado Dante de Oliveira, do Mato Grosso, apresentou a emenda que propunha a volta das eleições diretas para presidente da República. Nesse ano, Iram Saraiva votou a favor da que ficou conhecida como emenda Dante de Oliveira, que gerou a campanha das Diretas Já. O político goiano era um de seus entusiastas.

Ao contrário dos que radicalizaram e não queriam ir ao Colégio Eleitoral, por falta de uma visão política mais ampla e realista — deixando de entender que às vezes é preciso escolher não o melhor, e sim o possível —, Iram Saraiva apoiou a candidatura do mineiro Tancredo Neves para presidente, em 15 de janeiro de 1985.

Iram Saraiva: “Nada supera a democracia”, dizia | Foto: Reprodução

Ex-apóstolos da ditadura, Aureliano Chaves, Antônio Carlos Magalhães e José Sarney, que se tornou vice, aderiram a Tancredo Neves, que foi eleito pela Aliança Democrática — que incluía o PMDB e uma dissidência do PSD, o partido que apoiava a ditadura. Sarney acabou assumindo, para a tristeza dos peemedebistas que acreditavam em mudanças mais amplas que, com Sarney, não aconteceram.

Na eleição seguinte, em 1986, Iram Saraiva foi eleito senador pelo MDB. Ele obteve quase 1 milhão de votos — um dos mais votados da história de Goiás. Na campanha, entre outros temas, defendeu a reforma agrária. Mesmo atarefado em Brasília, pois era senador participativo, dava aulas de Direito Processual Penal na Faculdade Anhanguera, em Goiânia. Não era por dinheiro. Na verdade, amava a sala de aula, tinha prazer em debater com os alunos. Era uma maneira de se pôr em contato com jovens, de se manter ativo intelectualmente. Porque o professor, no ato de ensinar, é o que, por vezes, o que mais aprende. Desde sempre, Iram Saraiva tinha uma curiosidade intelectual  insaciável.

Durante a Assembleia Constituinte, foi titular da Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade, da Segurança, da Comissão de Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições, e suplente da Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos e da Comissão da Ordem Social.

Político de posições sólidas, registra o “Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro Pós-1930” (fonte básica deste texto), Iram Saraiva “votou contra a pena de morte, o presidencialismo, o mandato de cinco anos para o então presidente José Sarney e a pluralidade sindical. E a favor do rompimento de relações diplomáticas com países que praticassem políticas de discriminação racial, da limitação do direito de propriedade, da desapropriação da propriedade produtiva, da nacionalização do subsolo, da limitação dos encargos da dívida externa, da estatização do sistema financeiro, do limite de 12% ao ano para os juros reais, da soberania popular, do voto facultativo aos 16 anos, do mandado de segurança coletivo, da unicidade sindical, da jornada semanal de 40 anos, do turno ininterrupto de seis horas, da remuneração 50% superior para o trabalho extra, do aviso prévio proporcional, da proibição do comércio de sangue e da legalização do jogo do bicho”.

Em 1990, seguindo o exemplo de Franklin Roosevelt, decidiu tentar um cargo de Executivo — o de governador de Goiás. Como o MDB decidiu bancar a candidatura de Iris Rezende, Iram Saraiva disputou pelo PDT. Não ganhou, mas, disse ao Jornal Opção, numa visita à redação, que aprendeu muito. Iris Rezende é, na sua opinião, um grande profissional da política. Leitor de Max Weber, Iram Saraiva dizia que o prefeito de Goiânia é um político vocacionado. “O verdadeiro político é o que vive a política em tempo integral.” Sublinhava que a política era uma especialização.

Em 1994, Iram Saraiva deixou o Senado, cedendo a vaga ao suplente, Jacques Silva, e assumiu cargo de conselheiro do Tribunal de Contas da União. Chegou a ser presidente do TCU. Aposentou-se em 2003.

Parecia aposentado. Só parecia. Iram Saraiva não era homem de se aposentar. Em 2008, aos 64 anos, decidiu disputar mandato de vereador de Goiânia (começara sua vida política como vereador da cidade). Ganhou. Por sua vivência e capacidade de articulação, tornou-se presidente da Câmara Municipal.

Terminado o mandato, comentou-se: “Agora Iram Saraiva vai se aposentar”. Qual nada. Ele começou a escrever livros. Num deles, contou sua história e a história de sua mulher, Cida, que morreu, como ele, de um câncer (o que o matou foi um AVC, mas tinha câncer). É uma bela e sensível história, escrita com graça e amor, mas não melodrama. Na redação do Jornal Opção, lamentou que às vezes olhava pela janela, pensava na sua vida, no que havia feito e no que havia deixado de fazer, e sentia uma tristeza infinda. Uma lágrima furtiva rolou por sua face que, apesar da idade, não parecia velha — tal a vivacidade de sua inteligência, sua verve atilada e atenta. Falou da morte do artista plástico Roos (Roosevelt de Oliveira Lourenço), de quem era amigo e admirador. Roos havia feito a bela capa do livro no qual Iram Saraiva fala de Cida e de si. Falou também do filho Iram Saraiva Júnior, que, depois de ter sido político, decidiu voltar aos bancos escolares para estudar Medicina, no Rio de Janeiro.

Iram Saraiva era um homem de vários tempos, com vasta experiência, e por isso compreendia tão bem o tempo atual. Consagrou sua vida à defesa de democracia, das liberdades individuais, da cultura e, sim, do bom gosto. Ele gostava de arte, gostava de gente. Fará falta, mas sua história — na média, positiva — fica. É o que importa. (Euler de França Belém)