Coletânea traz contos inspirados nas faixas do álbum icônico dos Titãs, mantendo a diversidade e o impacto que marcam seu conceito musical
Quando faz 30 anos o próprio “Cabeça Dinossauro” da banda paulista de 1982, a homenagem se configura por meio da literatura | Foto: Reprodução
Yago Rodrigues Alvim
Conta a história que, logo depois de terminar a gravação do disco “Cabeça Dinossauro”, o guitarrista Tony Bellotto e o vocalista Branco Mello fizeram uma aposta. Iniciava-se o ano de 1986 e aquele era o terceiro trabalho de estúdio dos Titãs, que já eram figuras carimbadas em programas de auditório, com os sucessos “Sonífera Ilha”, “Marvin” e “Televisão”. Mas ainda faltava ao grupo paulista o tão cobiçado Disco de Ouro, que equivalia a 100 mil cópias vendidas. Foi então que Branco apostou que o novo álbum chegaria a esse número, diante da descrença de Belloto, que acreditava que o mercado fonográfico “não estaria sensível a um disco tão insolente”. O prêmio era uma garrafa de uísque.
A sorte de Bellotto, afinal, foi que a aposta se resumia a uma garrafa. Em um ano, “Cabeça Dinossauro” vendeu 250 mil cópias e, de acordo com a Associação Brasileira de Produtores de Discos, o número supera a marca de 700 mil nos dias de hoje. A grandeza do trabalho, porém, não se mede apenas pela quantidade. Muito bem recebido, à época, pela crítica especializada, o disco foi exaltado em sua potência musical e seu poder crítico e corrosivo das composições. Em 1997, uma votação feita pela revista Bizz o elegeu o Melhor Álbum Nacional de Rockpop de todos os tempos. Dez anos depois, foi a vez da Rolling Stone incluí-lo na 19ª posição, entre os 100 melhores discos da música brasileira. Eleições semelhantes se repetem de tempo em tempo, consolidando o “Cabeça Dinossauro” como um álbum icônico, um marco da cultura pop brasileira.
Não por menos, em 2012, quando os Titãs completaram 30 anos de carreira, o repertório original do disco foi escolhido para integrar um álbum comemorativo. Agora, quando é o próprio “Cabeça Dinossauro” que faz 30 anos, a homenagem se configura por meio da literatura. “Cada um por si e Deus contra todos” (frase tirada na canção “Homem primata”) é uma coletânea que transforma em contos as 13 faixas que formam o disco. Autores contemporâneos de destaque, a exemplo de Rafael Sperling, Mariel Reis, Márcia Barbieri e Sérgio Tavares (colaborador do Opção Cultural), compõem versões narrativas de clássicos do rock como “Bichos Escrotos”, “Homem Primata” e “Estado Violência”. A organização é do escritor carioca André Tartarini, que explica a intenção de proporcionar o diálogo entre literatura e música:
“Gosto muito de ver o que uma centelha artística pode gerar através de outra manifestação. Enquanto a música estabelece um diálogo que vai além das letras, a literatura depende só da palavra propriamente dita. Me intriga ver a gama de caminhos e soluções que cada autor cria para trilhar um caminho proposto, mesmo que seja um caminho totalmente aberto. Quando a gente entrega a faixa-título ‘Cabeça Dinossauro’ e o cara inventa uma história a partir disso (o conto ‘Papa Angu’ é assinado por Zé McGill), fica clara a maluquice que permeia isso tudo”, destaca o organizador.
A maluquice, aliás, é um dos combustíveis também do disco. Está no conceito, no sentido da multiplicidade musical, que vai do punk rock ao eletrofunk, e da expressão de uma crítica afiada contra as mazelas sociais, a corrupção dos valores morais e a imagem de instituições, a exemplo da família, da igreja, da polícia. Tartarini aponta que essa combustão de influências e elementos sonoros deu vida a contos também marcados por visões (ou audições) variadas.
“É um álbum predominantemente agressivo, e a transposição dessa agressividade para as páginas se deu de maneira diversificada. Sempre procuro convidar autores de diferentes estilos, para que os textos apresentem personalidades individuais. Mesmo que uma unidade maior não se mantenha, está aí, em minha opinião, a maior força do trabalho: a multiplicidade de abordagens. Então, o livro tem histórias mais agressivas, outras menos. Humor aqui e ali. Na verdade pra entender isso, só o lendo mesmo”.
Ontem e hoje
A escritora paulista Cristina Judar, que teve em mãos a emblemática “Polícia”, recorda-se do primeiro contato com o disco, no ano do lançamento. Adolescente à época, ela relata que a agressividade, somada às possibilidades sonoras e poéticas, chocou muita gente e fez barulho. “Eu, minha mãe e minha irmã ouvíamos o disco todo, especialmente a faixa ‘Bichos Escrotos’, num volume que, com certeza, abalou as estruturas do prédio onde morávamos”, comenta.
Ainda assim, para escrever o seu conto, ela preferiu usar como referência fatos mais recentes, trabalhando num contraponto entre visibilidade e invisibilidade. “Comecei a pesquisar alguns casos verídicos — como o caso Amarildo, o caso Cláudia — para depois inseri-los num ambiente ficcional. No conto, tudo se passa numa tenda de umbanda (uma religião que sofre muito preconceito e violência), com uma médium lésbica (como se sabe, o índice de violência contra pessoas LGBTs no Brasil é altíssimo), num ambiente de magia e revelações. Para escrever, precisei ir fundo em cada história, o processo de construção do texto foi pesado, embora tenha sido, ao mesmo tempo, satisfatório, principalmente por minha vontade de dar alguma visibilidade a pessoas que foram ‘apagadas’”, explica.
Em um ano, “Cabeça Dinossauro” vendeu 250 mil cópias e, hoje, o número supera a marca de 700 mil | Foto: Reprodução
O impacto do disco, porém, não se limita à temporalidade. Vivian Pizzinga, cujo conto é baseado na faixa “O que”, conta que sua primeira audição veio mais tarde, depois de ouvir uma amiga da sua mãe cantando “Bichos Escrotos”. A letra a levou a procurar o álbum mais tarde e, assim, interessar-se pelos temas perseguidos pela banda. “As músicas são absolutamente atuais, penso em ‘Estado Violência’, por exemplo: ‘A lei que não é minha/A lei que eu não queria’. Me faz pensar em todas essas leis, PECs, reformas e etc., que estão sendo implementadas a despeito de uma discussão mais ampla com a sociedade, a despeito de um amadurecimento, mudanças cruciais, inclusive na Constituição. Mas é claro que ‘homem primata, capitalismo selvagem’, com países inteiros cada vez mais atropelados pelo capitalismo financeiro, não há nada mais atual do que isso. Os próprios nomes das músicas são autoexplicativos e, infelizmente, são muitos paralelos diretos”, diz.
Realmente um dos aspectos mais impressionantes do disco é atualidade de suas letras. Três décadas depois, canções como “Igreja”, “Família e, como dito, “Polícia” representam com perfeição a realidade de hoje. Muito mais que clarividência, um atestado de como estamos presos num círculo vicioso de autodestruição. O jornalista Renato Lemos, que escreveu justamente sobre a faixa “A Face do Destruidor”, diz que incorporou essa ideia ao processo criativo do seu conto. “O que está destruindo o Brasil é a voracidade, a ganância dos que constroem e ao mesmo tempo destroem. Quis botar essas duas faces — construtor e destruidor — em uma só pessoa, alguém que convive com a paixão, a covardia e a ‘filhadaputagem’. Joguei a música na cama e nas relações de poder”, conta.
Tartarini também percebe (e lamenta) essa atemporalidade do repertório. “O que penso é que, como registro histórico, o disco mostra o quanto estamos empacados, ou andando a passos de tartaruga, ou em alguns casos até retrocedendo. É engraçado pensar que músicas feitas há 30 anos poderiam ter sido compostas nos dias de hoje. E isso talvez seja a principal crítica social que poderemos extrair da obra”, conclui o organizador.
Enquanto a história não se encarrega de abarcar os registros, que o “Cabeça Dinossauro” continue retumbando as mazelas brasileiras, através da crítica, do protesto e, agora, também da literatura.
“Infelizmente ‘Cabeça Dinossauro’ e as mazelas das quais trata permanecem perturbadoramente atuais”
Guitarrista e compositor Tony Bellotto: “Os autores souberam utilizar as músicas como inspiração e é um trabalho totalmente original e inventivo” | Foto: Reprodução
O guitarrista e compositor dos Titãs, Tony Bellotto, assina o prefácio de “Cada um por si e Deus contra todos”. Em entrevista exclusiva ao Opção Cultural, ele fala sobre a coletânea de contos que homenageia os 30 anos do disco “Cabeça Dinossauro”.
Embora com 30 anos, o “Cabeça Dinossauro” traz letras que se encaixam perfeitamente à realidade atual do Brasil. O que pensa disso?
Penso que é terrível! Adoraria que tais mazelas tivessem ficado para trás, mas infelizmente o CD permanece perturbadoramente atual.
Na condição de autor, o que acha do diálogo entre música e literatura?
Muito interessante. Os autores souberam utilizar as músicas como inspiração, mas é um trabalho totalmente original e inventivo.
Se fosse escrever um conto inspirado numa faixa do “Cabeça Dinossauro”, qual seria e por quê?
Talvez “Igreja”. Infelizmente a intromissão das igrejas na política só cresceu de 1986 pra cá, e isso é algo que me incomoda muito. É preciso combater esse dragão!
Leia o conto “Noite de Estreia” de Cristina Judar, presente na coletânea “Cada um por si e Deus contra todos”, organizada por André Tartarini
Autores como Rafael Sperling, Mariel Reis, Márcia Barbieri e Sérgio Tavares compõem versões narrativas de clássicos do rock como “Bichos Escrotos” e “Homem Primata” | Foto: Reprodução
Foram abertos os trabalhos. Os tocos de velas, as sombras, os ares queimados, os toques sagrados da quimbanda, os perfumes, as rodas no ar, as saias de pomba-gira, o vento produzido pelas saias. A atmosfera de outros mundos que chegavam para permanecer por toda uma noite. Tudo pronto para a entrada dos que seriam atendidos.
A primeira chegou e saudou. Contou do irmão ao exu da Dois Cês. O irmão tinha sido morto na noite. Ele era o próprio escuro da noite e foi apagado. O gambé precisava combater a sua invisibilidade. A invisibilidade é algo proibido no nosso mundo. Mais do que a inveja, a cobiça. Se você é invisível, está sujeito a levar tiro. Entre os alvos, está entre os preferidos. Você se mistura ao negro da noite, na ausência da razão. Não há outro motivo para você ser alvejado além de sua invisibilidade escancarada. Ela dói aos olhos de quem não te vê. Aí você vira mira. Aí você vira pó. Assim foi com Amarildo. Desaparecido por ser invisível. Amarildo foi nebulizado. Seus gritos espargidos ecoam nos porões abertos que nos envolvem hoje: cela-cidade, célula-tempo, corpo-prisão, cárcere-mídia. Dos escapamentos das viaturas, foram feitos turíbulos para defumações em massa, névoas da inconsciência para mentes precárias, para seres no subdesenvolvimento do sentir – feito um terceiro mundo da condição humana, que apaga homens pelo prazer de eliminar sua possibilidade de ser reconhecível aos olhos de alguém. Amarildo era seis. Havia se multiplicado em seis peixes de maré alta. Foi assim que teve seus filhos. Olhando pro mar e desejando ser imenso mundo. Cada criança, gerada na fonte oculta de sua mulher, uma oferenda de Yemanjá a Amarildo. Toda mulher é uma fonte, toda dona é um rio. Amarildo pescador, como aos homens vale ser. Agora diluído em mil vocábulos, espargido em moléculas de homem-mar destroçado por homem-lei. Julgado por homens-reis. Aqueles, donos de vidas. Que brincam de deidade, assim como ligam o GPS e põem o carro em ponto morto. E põem homens em ponto morto assim como ligam o GPS. Ele era o pilar de um barraco alto, de boa vista para um mar agora invisível para seus olhos inexistentes. A dor de sua irmã, sólida. Aos meus olhos e aos poros abertos do exu. A moça vertia na raiva de mil marés. Ela inundou o exu da Becca, eu, ao lado dele, náufrago da situação. Ambos tocados e irmãos diante daquela mulher integralmente em pedaços. O exu foi todo gestos e ritos pra tentar tirar aquela verdade indesejadamente alojada no peito da moça. Não teve poder para isso, mas fez o que pôde e chamou o próximo.