Verdade seja dita: “O ser humano não foi programado para a monogamia”

13 fevereiro 2016 às 13h38

COMPARTILHAR
Jornal Opção ouve especialistas em sexualidade e adeptos do poliamor para debater: Até onde vai a liberdade no campo afetivo?

*Para preservar a identidade dos entrevistados, todos os nomes citados ao longo da reportagem são fictícios
Kátia, de 34 anos, é casada com Maycon, três anos mais novo e professor universitário. O casal está junto há três anos e eles são pais de uma menina de pouco mais de um. A rotina dos dois é a mesma que a de tantos outros casais: almoçar em família, levar a criança para a escola, dividir as contas e as responsabilidades de casa. Talvez, a única diferença de Kátia e Maycon é que ambos são adeptos do “amor livre”, isto é, mantêm um relacionamento aberto. “Ou semiaberto”, brinca Kátia. As regras são simples: bissexual, Kátia pode ficar com outras mulheres indiscriminadamente, assim como o marido. Quando Kátia se interessa por homens, ambos discutem a respeito e geralmente Maycon permite os casos extraconjugais.
Também familiares ao ménage à trois, os dois não descartam a possibilidade de encontrar uma “terceira pessoa fixa”. No caso, passariam a ser um casal de três, “um trisal”, como define Kátia. Como se relacionam juntos com terceiros, a ideia é bem quista pelos dois, mas não é tão simples como parece. “Temos intenção e interesse, mas aí, teríamos que nos relacionar com muita gente, para conhecer as pessoas, e seria um pouco mais delicado”, admite.
Ao Jornal Opção, a mulher pondera que, em seu relacionamento, “tudo é muito combinado” e ao mesmo tempo “natural”. “O que muda é o que acontece durante a noite”, garante Kátia, que conta que já teve outros relacionamentos abertos. Todos eles exitosos. “Ele já me conheceu vivendo assim. Quando a gente se conheceu, minha intenção era ficar num nível mais convencional, mas, uma vez que você entra, é difícil sair.”
A relação com a família e amigos não é tão complicada quanto se pode pensar. Ela conta que a maioria tem conhecimento da formatação de seu casamento, e age com naturalidade quando o assunto é posto à mesa. Os pais não sabem, nem os parentes mais distantes. Tudo para evitar falatório e (pré) julgamentos.
Sobre a criação da filha de pouco mais de 1 ano, o casal acredita ainda ser cedo para pensar como tratará o relacionamento com a pequena, e tenta levar a situação da forma mais natural possível. “Não vamos nos colocar em um estado de estresse, porque não há como prever o futuro. Pensamos em criá-la com toda a liberdade do mundo. Ao mesmo tempo, é lógico que temos medo de dar liberdade demais, mas pensamos em criá-la num ambiente real”, explica Kátia.
Além da óbvia maior exposição a Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), Kátia destaca o preconceito e a desinformação como principais desvantagens do poliamor. “É bom quando você consegue ter o mínimo de liberdade. E ter liberdade não significa que vamos viver na putaria”, frisa, logo após fazer uma breve reflexão sobre o futuro do relacionamento: “Talvez a gente feche nossa relação futuramente. Ou abra ainda mais. Não dá para saber”.
“Meu amor é seu. Meu tesão é meu”

Pode até lhe parecer estranho, ou diferente, mas relacionamentos abertos estão cada vez mais comuns e são mais “naturais” do que se possa imaginar. Em entrevista ao Jornal Opção, a sexóloga e co-fundadora da Sociedade Brasileira de Sexualidade Humana, Deusanete Carneiro Maciel, afirma que a poligamia sempre esteve presente nas relações humanas, diferentemente da monogamia, a qual a profissional entende como “um condicionamento social”.
“Existem vários estudos, tanto antropológicos, sociológicos quanto psicológicos, registrando as práticas sexuais desde o início da civilização e, sem dúvida, até por uma questão de propagação da espécie, as relações eram poligâmicas. A verdade é que o ser humano não é biologicamente programado para a monogamia. Sempre haverá o desejo por terceiros de ambas as partes”, sentencia a sexóloga.
A especialista explica que o desejo faz parte do instinto humano, independentemente se a pessoa está em um relacionamento considerado satisfatório ou não. Por isso, pode-se tentar entender e aceitar que o sexo genital não é sinônimo de amor, nem tão pouco de compromisso afetivo, passando a ser tolerável os casos extraconjugais.
Para Deusanete, as relações afetivas e sexuais devem ser diferenciadas, uma vez que o sexo não estaria necessariamente vinculado ao sentimento de amor, uma lógica pouco palatável para quem não gosta de nem sequer imaginar o parceiro ou parceira com outros. Mas este não é o caso do jovem Gabriel, de 33 anos. Há quase oito meses em um relacionamento aberto, o primeiro de sua vida, ele conta que resolveu partir para o novo formato para se livrar da hipocrisia e do machismo. “Antes, eu traía minhas namoradas. E quis libertar minha parceira, porque meu ciúme estava ligado ao machismo, uma sensação de posse. Era muita hipocrisia minha. Era aberto, mas só de um lado”, explica o jovem, que ratifica: “Todo amor deve ser livre. Meu amor é seu, meu tesão é meu”.
Gabriel conta também que seu relacionamento ainda está em fase de construção e, por isso, diz ser inevitável brigas e discussões. “O padrão da monogamia está formado, da poligamia não.” Novato no universo do poliamor, ele tem praticamente as mesmas percepções da veterana Kátia. Para os dois, o discernimento das pessoas sobre o assunto ainda é muito reduzido. “Acham que é putaria”, reforça.
Mas eu me mordo de ciúme
O desprendimento dos adeptos ao amor livre impressiona, mas se engana quem acha que relacionamentos abertos estão livres de problemas comuns na monogamia, como o (nada) bom e velho ciúme. Kátia sabe bem como é lidar constantemente com este sentimento em um relacionamento aberto e com uma questão ainda mais cruel: a incerteza da volta. Para ela, não interessa o formato da relação, o ciúme sempre será o mesmo.
“Todo mundo sente ciúme da mesma maneira. Todo dia lido com isso. O interessante é que depois de tudo ele volta, mas o medo de perder está em todos. É parecido com meu relacionamento enquanto mãe: quando levei minha filha para a escola pela primeira vez meu coração ficou partido, mas sei que é o melhor para ela. A pessoa livre fica se quiser.”

É o que também defende o secretário geral da Escola Brasileira de Psicanálise de Goiás e do Distrito Federal, Cristiano Pimenta. Segundo ele, o ciúme não é necessariamente uma “escolha” do indivíduo, nem fruto da convivência social. Em entrevista ao Jornal Opção, o psicanalista garante que o sentimento faz parte do comportamento humano. “Ciúme não é algo cultural. Embora possamos pensar e identificar certas formas de ciúmes ligados a certos contextos, parece impossível crer em um agrupamento humano sem os ciúmes”, defende.
Assim, para Cristiano Pimenta, nem mesmo quem opta pelo amor livre está imune de um ataque de ciúmes. “É uma ilusão crer que um relacionamento aberto não irá trazer problemas deste gênero. Relacionamentos abertos não são a solução para o campo afetivo. Não acredito que as pessoas possam ficar totalmente livres de toda e qualquer manifestação de ciúme”, explica.
Com um ou com vários, o importante é ser feliz
Antes de propor a seu parceiro ou parceira um novo formato de relacionamento, é importante lembrar que, conforme frisa a sexóloga Deusanete Carneiro Maciel, as vantagens do poliamor existem, antes de qualquer coisa, se houver total consentimento. “O prudente é termos consciência dos ônus e do bônus de tal aceitação. Quanto às vantagens, é mais provável que só existam se for consentido. A própria transgressão gera ônus!”, destaca.
O psicanalista Cristiano Pimenta analisa a questão de maneira semelhante. Ele frisa que o poliamor não deve ser colocado como um paradigma ideal a ser perseguido no campo afetivo. Na verdade, segundo o especialista, não existe uma conduta mais apropriada quando este é o assunto. “Hoje é preciso que cada um construa os próprios paradigmas em função do enfrentamento com as várias dimensões da vida afetiva. É preciso um pouco de invenção e não apoiar em padrões.”
Já para Kátia, o importante é a liberdade, esteja você fiel a um ou mais parceiros. “Não posso dizer que a monogamia está fadada ao insucesso. Ser livre é poder viver do jeito que você quer, inclusive, viver em um relacionamento monogâmico”, finaliza.