Um pescador que tem o mar como sua segunda casa

09 julho 2024 às 14h01

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O pôr do sol teve como fundo musical “Bolero de Ravel”. A música foi executada pelo saxofonista Jurandy do Sax, isso à beira do rio Paraíba em Cabedelo, um município da Região Metropolitana de João Pessoa. Essa mistura magistral teve início em 2001, e a ideia foi do próprio Jurandy, cujo propósito foi o de atrair mais turistas ao seu bar à beira da praia. Funcionou. Assisti a esse espetáculo no mês passado. Centenas de pessoas na beira da praia e dentro dos catamarãs estavam introspectivamente maravilhados com o show. E Jurandy, em pé num pequeno barco, circulava entre os catamarãs, indo também à beira da praia e executando a música divinamente.
Jurandy, para minha sorte, tocou dentro do catamarã em que eu estava. Tenho procurado ver e ouvir além daquilo que há para se ver e ouvir das coisas. Isso seguindo um toque de Nietzsche. Dentro daquele cenário crepuscular que antecede os instantes finais da despedida diária do sol, adornado com a música de Maurice Ravel, ouvi o Fernando Pessoa dizendo, pela boca do vento, que “a luz do sol vale mais que os pensamentos de todos os filósofos e de todos os poetas”. Conheço poetas que desconhecem isso. Azar o deles.
E aqui entra o pescador que tem o mar como sua segunda casa. Eu tive o privilégio de conhecê-lo ao retornar de Cabedelo para João Pessoa, onde estava curtindo alguns dias de férias. Ele estava em frente sob a sombra de uma enorme amendoeira (árvore que por lá chamam de castanhola), em frente do mercado de peixe na Praia de Tambaú. Seu nome é Heriberto Cardoso de Melo Filho, de 61 anos.
JPerguntar por Heriberto na praia, ninguém sabe dizer quem é. É conhecido como Coreano ou Beto de Nena. O primeiro apelido veio de um boné que ganhou de um turista sul-coreano, do qual Heriberto não se despregava até para dormir, já o segundo tem ver com sua mãe: Ivanete Cardoso de Melo (mais conhecida como Nena), que, para a alegria do filho, ainda está viva e tem 84 anos.
Sua vida de pescador não é nada fácil. É pauleira. Numa pescaria recente, me contou que ele e mais dois companheiros só sobreviveram “com as graças de Deus”. O mar ficou nervoso. Por pouco, o pequeno barco não foi engolido pelo mar. O trio enche o barco de todos os utensílios e alimentos necessários para ficar até dez dias no mar. Isso a uns 30 quilômetros da praia. São seis horas de viagem. E a essa distância, é preciso ficar atento aos grandes navios que passam, isso tanto de dia como de noite. Nos momentos de descanso, um tem de ficar de plantão para observar a aproximação de navios. Vão se revezando na tarefa.
Heriberto conta que certa vez um navio passou de raspão no barco em que estava. Isso à noite. O motor parou, a embarcação ficou à deriva. Os três improvisaram velas com os lençóis que levam para dormir. “Foi um grande susto, mas graças a Deus voltamos para casa e com muitos pescados”, diz. Foi seu pai que lhe ensinou a tirar o sustento do mar. Aos 11 anos começou a vida de pescador realizando pesca de arrasto com seu pai, que é o uso de uma rede grande a qual é esticada na beira do mar e depois é puxada por dois pescadores para a areia. E assim colher o que caiu na rede. Aos 16 foi para o mar com seu pai, do qual herdou o nome e a profissão; pescavam numa jangada de vela. Os grandes navios pesqueiros também realizam pesca de arrasto, só que a rede quilométrica é puxada para dentro dos navios.
O peixe o maior que pegou, em seus 50 anos de pescaria, foi um marlim de 71 quilos. Brinquei dizendo se não era conversa de pescador. “Não, patrão, é verdade verdadeira”, contestou. Heriberto chama o mar de sua segunda casa. Do mar, conta, “tiro o sustento para minha família”. Nesta segunda-feira, por volta das 10h, recebi um vídeo dele. Estava regressando de uma pescaria de dez dias. Assim que foi possível captar sinal de internet, isso a uns 20 quilômetros da Praia de Tambaú, fez o vídeo e me enviou. Fizeram feira. A mesa de muitas pessoas vão poder contar com o sabor dos peixes por eles pescados com muito sacrifício.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
