Em 3 de dezembro de 2023, o Brasil perdeu um dos seus mais notáveis pensadores: Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo. A partida desse intelectual quilombola não apenas marcou o fim de uma vida, mas simbolizou o esvaziamento de um legado fundamental para a luta pela justiça social e a valorização das tradições negras. Com uma trajetória dedicada à preservação dos saberes quilombolas, Nego Bispo foi uma referência na luta contra as estruturas coloniais, tanto na teoria quanto na prática, trazendo à tona discussões que reverberam até hoje.

Origem e trajetória se entrelaçam de forma única na vida de Nego Bispo. Nascido em 1959, na comunidade quilombola Saco Curtume, no Piauí, ele foi o primeiro de sua família a aprender a ler e escrever. Entretanto, sua verdadeira educação não veio das salas de aula, mas da convivência com sua comunidade, dos saberes compartilhados na oralidade e na experiência cotidiana.

Sem concluir a educação formal, ele construiu sua obra por meio da sabedoria do campo, da vivência direta e do pensamento profundo, culminando em livros como “Quilombos, modos e significados” e “Colonização, Quilombos: modos e significados”, que refletem sua visão inovadora e a luta pela autonomia intelectual.

A atuação de Nego Bispo não se limitava aos livros. Como líder da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), ele se tornou uma figura central na defesa dos direitos das comunidades quilombolas, uma voz ativa contra o racismo estrutural e em prol da preservação dos territórios.

Sua luta envolvia não apenas a conquista de terras, mas também a garantia de direitos fundamentais, como o reconhecimento da cultura e identidade quilombola. O pensamento e a prática de Nego Bispo influenciaram movimentos sociais, acadêmicos e políticos, sempre trazendo uma perspectiva que vinha das raízes do povo e ressoava em toda a sociedade.

Muito além de um ativista, Nego Bispo foi um inovador do pensamento crítico. Ao propor o conceito de “contracolonização”, ele deu novos rumos à resistência negra, sugerindo que a verdadeira emancipação não viria apenas do enfrentamento das estruturas de poder existentes, mas da construção de alternativas práticas e teóricas para a liberdade. A partir de sua experiência, ele reafirmava que a luta quilombola era um projeto de futuro, um modelo de resistência que visava não só a sobrevivência, mas a criação de um novo mundo, mais justo e igualitário.

Para ele, o quilombo era uma metáfora para um futuro melhor, não apenas um refúgio do passado. Nego Bispo nos ensinou que, ao preservar a memória ancestral, também se criam os alicerces para um novo tipo de sociedade. Ele acreditava que o conhecimento quilombola — que une a prática da vida comunitária à reflexão teórica — poderia transformar as estruturas dominantes, dando voz e poder a quem sempre foi silenciado. Sua resistência, então, não se limitava ao contexto histórico ou político imediato, mas se projetava como um movimento contínuo em busca de dignidade para os povos negros e para toda a sociedade.

Mesmo com sua partida, o legado de Nego Bispo continua a nos desafiar e a nos inspirar. Seu trabalho incansável por justiça, igualdade e reconhecimento nos convida a manter viva a chama de suas ideias, agora mais necessárias do que nunca. A luta que ele iniciou deve continuar, porque a resistência quilombola não é apenas uma resposta ao passado, mas uma construção ativa e permanente de um futuro mais justo, onde todos possam viver com dignidade e respeito.

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