Quero visitar a poeta Emily Dickinson, mas Trump me impede

22 agosto 2025 às 10h09

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Quero voltar aos Estados Unidos quando a Estátua da Liberdade não estiver mais com o rosto cabisbaixo e o abraço direito segurando a tocha acesa (metaforizando liberdade) abaixado como está ocorrendo neste momento pelo fato de o atual presidente se achar que é o dono do país como também o dono de outros ao seu jeitão autoritário. É difícil acreditar que essa arrelia toda de Donald Trump para com o Brasil seja simplesmente motivada pela amizade que ele tem para com a família Bolsonaro. Em relação a isso, altaneiro leitor, é mais fácil acreditar que foi a mula-sem-cabeça que comeu uma das pernas do saci-pererê.
Esse imbróglio todo (que talvez seja a ponta de um iceberg) me levou a reassistir, nesta semana, ao filme Syriana. Um filmaço. Vi um quê da película nessa postura beligerante de Trump. Pode ser subjetividade minha. (E tomara mesmo que seja.) Syriana mostra criativamente como é o sanguinário bastidor geopolítico na busca pelo petróleo.
O ouro negro do Oriente Médio é o motivo das ações de Washington, grandes corporações e a Cia, que acabam eliminando a vida do príncipe reformista Nasir Al-Subaai de forma brutal. E isso pelo fato de ele estabelecer negócio com a China para exploração de gás natural. Nasir buscava libertar seus país da canga americana e assim modernizá-lo. Um míssil disparado por um drone atinge o carro em que Nasir e sua família estavam formando um buraco enorme no chão de tão grande que foi a explosão.
Quando a Estátua da Liberdade (presente da França aos EUA) voltar ao seu estado normal desde sua inauguração, ocorrida em 1886, em comemoração aos 100 anos de independência dos Estados Unidos, quero retornar ao país para, metonimicamente falando, visitar Emily Dickinson (10/12/1830 – 15/5/ 1886).

Friedrich Trump, avô paterno de Donaldo Trump, chegou à América um ano antes da estátua. Ele veio da Alemanha, ganhou uns bons trocados nos EUA e picou a mula de volta para seu país de origem em 1901, mas foi impedido de ficar pelo fato de não ter cumprido serviço militar obrigatório nem ter informado às autoridades alemãs sobre sua ida para os Estados Unidos. Então capou o gato volta para a América já casado. E então começou a semear as primeiras sementes do império de hoje do megalomaníaco magnata Donald Trump.
Sobre a poeta Emily Dickinson, mesmo vivendo de modo recluso, ela foi ousada nos seus poemas. Sua poesia era extraordinária, extraía sublimemente filosofia em coisas simples do seu cotidiano. Pretendo conhecer a casa em que ela nasceu e viveu em Amherst, Massachusetts, e que hoje abriga o Museu Emily Dickinson. Sua cidade fica a 118 quilômetros de Concord, terra do notável poeta e escritor Henry David Thoreau (12/7/1817 – 6/5/1862), autor de um dos livros mais importantes que já li na minha vida até o momento: “Walden, ou A vida nos bosques”. “Ensaios”, de Michel de Montaigne é outro.
Vou revisitar Thoreau em seu túmulo, sobre o qual há uma pequena pedra como lápide tendo apenas o seu prenome: Henry. Seu túmulo estava cheio de flores quando o visitei. Até toquei na lápide. Vou lavar meu rosto nas águas do Lago Walden, em cuja margem o poeta viveu por dois anos numa cabana construída por ele “para sugar todo o tutano da vida” numa vida despojada, mas exuberante em riqueza ambiental do local, não afetado pelas engrenagens da cidade. O local pertencia ao também poeta Ralph Waldo Emerson, que era mais velho que Thoreau 14 anos. Emerson não nasceu em Concord, foi morar lá depois de casado.
Voltando a Dickinson, os primeiros poemas que li dela me foram dados pelo amigo bibliófilo e passarinhófilo Euler de França de Belém. Os poemas foram reproduzidos de um livro por meio de fotocópia. O néctar do seu lirismo me embriagou de um modo sem volta. Ler Dickinson é me embriagar de poesia conforme recomendou o poeta Charles Baudelaire como uma das alternativas de fuga do “fardo terrível do tempo”. Recentemente um fato me levou ao seu poema “Não viverei em vão”, cuja tradução é de Aíla de Oliveira Gomes.
Num trecho do poema, Dickinson fala da realização de algumas coisas para que sua vida não fosse em vão (e não foi). O fato que trouxe o poema está relacionado a passarinho: “Ou ajudar exangue passarinho / A subir de novo ao ninho -/ Não viverei em vão”. O passarinho, no meu caso, foi uma rolinha-roxa, também conhecida como rolinha-caldo-de-feijão (nome advindo da coloração de sua plumagem assemelhar-se à leguminosa já preparada). Há outros nomes populares.
Não cheguei a ajudá-la diretamente a voltar ao ninho; indiretamente sim. Salvei sua vida. Ouvi o debater de suas asas tentando livrar um dos seus pés preso na ponta de um galho seco da romanzeira na sacada do meu apartamento. Havia fios de cabelos em seu pé e foram eles que a impediram de voar. Quebrei o galho, retirei os fios de cabelos. Ela foi embora, indiretamente ajudei-a a voltar ao seu ninho.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
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