Nos próximos anos, é previsto um aumento na temperatura diária ou a intensificação das chuvas no Brasil, decorrente das mudanças climáticas. De acordo com especialistas consultados pela BBC News Brasil, a significativa disparidade social presente no país tende a ter um impacto direto sobre aqueles que mais sofrerão com os efeitos das mudanças climáticas na saúde pública.

Isso pode se manifestar através do surgimento de novas doenças ou do aumento no número de casos de arboviroses, como dengue, malária e febre amarela, transmitidas principalmente por mosquitos, e também de leishmaniose.

Cássia Lemos, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), está entre os profissionais brasileiros que têm se dedicado a prever o impacto das mudanças climáticas no sistema de saúde do Brasil. Ela destaca que estudos indicam um possível aumento significativo das arboviroses como resultado das mudanças climáticas.

A articuladora da AdaptaBrasil, plataforma que avalia os potenciais riscos das mudanças climáticas em diversas áreas do país, afirma que pesquisas já apontam que as doenças mais suscetíveis a aumentos são as arboviroses.

“Além da dengue, que já é um problema, nossas projeções mostram que a malária deve se alastrar ainda mais pela região Norte e atingir de forma intensa o litoral do Nordeste até 2050.”

Além disso, projeções feitas pela plataforma governamental em colaboração com instituições de pesquisa e ensino do Brasil indicam um crescimento nos casos de leishmaniose tegumentar americana e leishmaniose visceral.

Para fazer tais previsões, os pesquisadores analisaram o perfil epidemiológico das infecções, as particularidades de cada doença e dados sobre a progressão das condições de saúde, como hospitalizações ou óbitos.

Em seguida, levaram em conta os aspectos socioeconômicos e demográficos de cada município, bem como a organização e qualidade do sistema de saúde local para lidar com as demandas sanitárias decorrentes das doenças e para promover a vigilância e controle dos vetores.

“Com isso, percebemos que não é somente o aumento de temperatura ou eventos climáticos extremos que irão causar as doenças, mas as próprias características socioecológicas da população brasileira devem favorecer a proliferação dessas patologias”, diz Cassia.

Seleção Natural

Leandro Gurgel, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ressalta que outro fator que pode contribuir para o agravamento das arboviroses no futuro é a aplicação literal da Teoria da Seleção Natural de Charles Darwin por mosquitos e pernilongos.

“Todos nós temos um limite de tolerância de temperatura, seja superior ou inferior, mas o que temos notado é que os vetores se adaptam cada vez melhor a esses extremos climáticos. Isso os torna um problema cada vez maior para a saúde pública do mundo, pois mais resistentes, [os mosquitos] possuem mais exemplares e consequentemente conseguem atingir mais pessoas transmitindo doenças”, aponta Gurgel.

Como exemplo, o pesquisador da Fiocruz menciona a elevada capacidade reprodutiva do Aedes aegypti, um dos principais vetores responsáveis pela transmissão de doenças como dengue, chikungunya e zika vírus no Brasil.

“O Aedes aegypti é um mosquito cada vez mais adaptado às mudanças do clima. Antigamente, ouvíamos que ele somente se reproduzia em água limpa e parada. Hoje em dia, por exemplo, sabemos que ele se reproduz em lixo, água suja e que o ovo do mosquito pode se manter viável por mais de um ano sem água”, diz.

“Mas o pior é que, hoje em dia, não é apenas picando uma pessoa contaminada que o vetor se contamina e transmite a doença. O simples ato de uma fêmea ‘grávida’ do Aedes aegypti picar uma pessoa com dengue, automaticamente, faz com que ela contamine até 50% dos seus ‘filhos’. Ou seja, são novos Aedes que já apresentam capacidade de transmitir doenças em sua origem”, explica Gurgel.

Letalidade

Outras categorias de doenças também são previstas para aumentar no futuro, além das arboviroses. De acordo com projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas, é esperado um aumento de 1,5ºC a 4ºC na temperatura média até o final deste século, o que deve contribuir para o crescimento de doenças respiratórias, cardiovasculares e renais no Brasil.

Estudos realizados evidenciam que um acréscimo de 1ºC na temperatura média pode ter aumentado em cerca de 1% o risco de internações por doenças renais, conforme uma pesquisa que examinou os registros de saúde de 1.816 cidades brasileiras entre 2000 e 2015.

Conduzido pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Universidade Monash, da Austrália, este estudo sugere que a desidratação decorrente do aumento de temperatura pode ser um fator significativo no surgimento dessas doenças nos próximos anos.

Outro estudo realizado pelo Salud Urbana en América Latina (Salurbal) e publicado na revista Nature Medicine constatou que a elevação da temperatura está associada a um maior risco de mortalidade por doenças cardiovasculares e respiratórias.

Os pesquisadores examinaram dados de 326 cidades de nove países da América Latina entre 2002 e 2015 e identificaram uma relação direta entre temperaturas extremas e a mortalidade nessas condições.

“O que a gente notou é que tanto para as temperaturas extremas para baixo [frio], quanto para as temperaturas extremas para cima [calor], aumenta o risco de morte para as doenças. Entretanto, quando é maior a temperatura para cima [calor], esse risco de morrer aumenta”, explica Waleska Teixeira Caiaffa, médica brasileira que participou do estudo e coordenadora do Observatório de Saúde Urbana da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A exposição prolongada a altas temperaturas pode comprometer a capacidade do corpo de regular sua temperatura interna, levando a complicações como insolação, síncope e exaustão pelo calor, aumentando, por exemplo, as chances de ocorrência de um acidente vascular cerebral (AVC).

“Os dados somente evidenciam como mudanças climáticas não são uma pauta que deve estar ligada somente ao meio ambiente, mas a todos os setores, pois todos de alguma forma vão ser afetados pelo aumento da temperatura ou eventos climáticos extremos”, aponta Waleska Caiaffa.

Outras doenças

A incidência de doenças infecciosas e parasitárias no Brasil está prevista para aumentar devido aos alagamentos causados por desastres naturais ou eventos climáticos extremos em áreas urbanas densamente povoadas.

Esses incidentes, como chuvas intensas e problemas de drenagem de água, juntamente com falhas na gestão de resíduos e esgoto, criam condições favoráveis para surtos de doenças como a leptospirose.

Além disso, a escassez de água devido às altas temperaturas pode desencadear mais casos de esquistossomose e diarreias, resultantes do consumo de água contaminada.

Os caramujos do gênero Biomphalaria, que são portadores do parasita causador da esquistossomose, prosperam em locais com água estagnada.

“Pode ser, por exemplo, que tenhamos mais problema de malária no Norte e Nordeste, mas de dengue no Sudeste. O aumento de doenças vai depender muito de quais vão ser as mudanças climáticas para cada região e de como é a situação socioeconômica da população”, afirma James Venturi, coordenador do programa de pós graduação de doenças infecciosas e parasitárias da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).

O pesquisador Leandro Gurgel, da Fiocruz, ressalta que a própria reação da sociedade pode contribuir para a propagação de certos parasitas.

“Então, por exemplo, quando eu tenho aumento de temperatura e passo a ter a necessidade de usar ainda mais agrotóxicos e fungicidas, já percebemos uma seleção natural, tornando esses parasitas mais resistentes e propícios a contaminar [no sentido de infectar] seres humanos no futuro.”

É crucial, segundo Gurgel, que tanto os governos quanto a sociedade civil se engajem mais do que nunca na mitigação das mudanças climáticas.

“Assim como as doenças, que são resultado de uma agressão ao meio ambiente, a mesma coisa está acontecendo com o meio ambiente. Nós o estamos agredindo e uma hora a conta chega, seja com aumento de temperatura, alteração no regime de chuvas ou até eventos climáticos extremos”, afirma.

Waleska Teixeira Caiaffa, da UFMG, enfatiza a necessidade de uma discussão mais ampla sobre essa situação pela sociedade.

“As pessoas precisam entender que o que a gente esperava acontecer em 2030 já está acontecendo. É necessário organizarmos nosso serviço de saúde para essas novas demandas, e isso também inclui planejamento urbano.”

“Um idoso na favela que mora em uma casa sem água encanada ou saneamento básico pode ser uma potencial vítima das mudanças climáticas. Assim como uma criança sem acesso a serviços básicos de saúde. É preciso que entendamos a gravidade das mudanças climáticas”, afirma a médica.

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