Quaresma: a escada – entre um deserto e um jardim
02 abril 2019 às 20h20
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Está o leitor diante de “Quarta-feira de cinzas”[i] – poema da parte final da produção de T.S. Eliot (1930), a que o crítico Northrop Frye intitula da “visão purgatorial” do poeta anglo-americano – onde, em seis partes numeradas, o poeta nos apresenta um deserto, um jardim e uma escadaria entre os dois.
Segundo o historiador das Religiões e mitólogo romeno Mircea Eliade: “Na geografia mítica, o espaço sagrado é o espaço real por excelência”, isto é, fica claro que “para o mundo arcaico o mito é real porque ele relata as manifestações da verdadeira realidade: o Sagrado”.
“Desse espaço sagrado, deste Centro é que partem as comunicações do homem e a divindade, assim o Centro constitui-se em “ponto de interseção” – portanto, daí, o Inferno, o centro da terra e a porta do céu encontram no Centro uma “passagem cósmica” de uma a outra região“.
Essa passagem cósmica pode ser ilustrada observando-se atentamente os ritos de ascensão que têm lugar num “Centro” e Eliade anota que “um número considerável de mitos fala de uma árvore, de um cipó, uma corda, um fio de aranha ou de uma escada que ligam a Terra ao Céu, e através dos quais certos seres privilegiados sobem efetivamente ao Céu.”
Está o leitor diante de “Quarta-feira de cinzas”[ii] – poema da parte final da produção de T.S. Eliot (1930), a que o crítico Northrop Frye intitula da “visão purgatorial” do poeta anglo-americano – onde, em seis partes numeradas, o poeta se nos apresenta um deserto, um jardim e uma escadaria entre os dois.
A primeira tradução deste poema a que o cronista teve acesso em língua portuguesa foi talvez a de Ivan Junqueira (ou quem sabe de Oswaldino Marques?), quando lia com mais ansiedade e pressa do que nesta quadra da vida, quando então somos, leitores de Eliot, brindados pela tradução deste talentoso jovem Caetano W. Galindo, que fala de sua experiência de tradutor do poeta inglês[iii]:
“Lembro detalhadamente o dia em que saí
da universidade carregando um volume com a poesia reunida de T. S. Eliot. Devia
ser 1994, 1995. E tinha decidido que era hora de ver o que tinha a dizer aquele
poeta tão conhecido.
“Lembro de passar pelos primeiros poemas sem entender muita coisa. Lembro de ter gostado da recorrência da persona(gem) Sweeney. E lembro com grande nitidez do momento em que topei com os versos de abertura de Ash Wednesday.
“Because I
do not hope to turn again
Because I do not hope
Because I do not hope to turn
“Li, reli: sorri. O ritmo, o pentâmetro jâmbico perfeito (o
“decassílabo” inglês) que depois se desfaz, a repetição, o uso algo estranho
daquele verbo “to turn”. Tudo me seduziu inapelavelmente. Encantatoriamente.
“Mal sabia que aquele poema seria ainda mais complexo que os outros. Mas isso
pouco importava naquele primeiro momento. O poeta me conquistou pela
sonoridade. E no trecho final do poema, como se não bastasse, os versos
reaparecem, agora transformados…!
“Porque
eu já não espero tornar mais
Porque eu já não espero
Porque eu já não espero tornar
De dons, visões alheias, desespero
A brasa de querê-los não me abrasa
(Devia a velha águia abrir as asas?)
Por que deveria chorar
A força finda de impérios normais?”
Assim Galindo inicia seu mergulho
na obra de Eliot, dando-nos a sua versão tanto do “Eliot cerebral, complexo, do
erudito” – o “incompreensível”, quanto do “Eliot, o travesso” de “O livro dos
gatos sensatos do Velho Gambá” (1939).
Nesta vertente, encontrará o leitor na tradução de Galindo saídas geniais para
o competente “versificador Eliot” – um dos
mais competentes do século”, segundo Galindo,que tomou a liberdade poética transformar o londrino gato Morgan
no gato (Chico?) Bento, alcançando resultados satisfatórios.
Sim, chega a bom termo o jovem e experiente tradutor, porém, não é dos gatos
que deseja o cronista se ocupar hoje, e sim do deserto, do jardim e das escadas.
Ficam os felinos para uma próxima jornada, sem demérito do tema e do bom resultado
alcançado pelo tradutor.
Como se sabe, “o deserto e o jardim são símbolos centrais em nossa tradição literária e religiosa e uma quantidade de elementos desse simbolismo se tornou tão intimamente interligada que se identifica de pronto” – diz Northrop Frye em se ensaio “Do fogo pelo fogo[iv]” sobre Eliot.
Segundo Frye, podem ser identificados sete desses símbolos no poema “Quarta-feira de cinzas”, que são esquematicamente:
1. A queda de Adão – “o milionário arruinado”, condenado a ganhar o sustento na Natureza, ao final será reconduzido ao jardim do Éden e terá restaurados a árvore e o rio da vida;
2. Israel vagueia no deserto quarenta anos, em busca da Terra Prometida – a Canaã – “Sob uma árvore no frescor do dia, com a benção da areia,/Esquecendo-se de si e uns dos outros, unidos/No silêncio do deserto. É esta a terra que haveis/De partilhar em lotes. E nem partilha nem inteireza/Importam. É esta a terra. Temos nossa herança[v]”
3. Israel em seu último exílio – reprimendas aos desobedientes e, de novo, o jardim: “Ó povo meu; que te tenho feito? // Irá a irmã velada entre os ramos que pendem/Dos teixos rogar por aqueles que a ofendem/E aterrados não conseguem, não se rendem/E afirmam ante o mundo e negam entre as rochas/No último deserto entre as últimas rochas azuis/O deserto no jardim o jardim no deserto/Da seca, cuspindo da boca a semente murcha da maçã.// Ó povo meu”.
4. A sabedoria de Salomão retomada por Eliot como “o contraste entre o mundo da vaidade (“carga de gafanhotos”) e o “jardim da Noiva e sua irmã” – onde há uma “Dama” (II) e uma “irmã de véu” – como a Beatrice de Dante. “Senhora dos silêncios/Calma e perturbada/Rota e quase inteira/Rosa da memória/Rosa do esquecimento/Exaurida e que dá vida/Tensa descansadamente/A rosa só/É ora o Jardim/Onde acabam os amores/Extermina o tormento/Do amor insatisfeito/O maior dos tormentos/Do amor satisfeito/Fim da infinita/Jornada sem fins/Conclusão de tudo que/É inconcluível/Fala sem palavra e/Palavra sem fala nenhuma/Graça à Mãe/Pelo Jardim/Onde acaba todo o amor”.
5. Do calendário da Igreja, tem-se que “a vida de Cristo é polarizada entre sua tentação, quando ele vagueia quarenta dias no deserto, e sua paixão, que se estende desde a agonia num jardim à sua ressurreição em outro”. Frye aponta a similaridade que há entre a tentação de Cristo (40 dias) e Israel que 40 anos vagou pelo deserto sob a liderança de Moisés; e a ressurreição de Cristo, similar à conquista da Terra Prometida por Josué – que tem o mesmo nome de Jesus.
6. “A comemoração da tentação pela Igreja nos quarenta dias da Quaresma, que começam na quarta-feira de cinzas, seguida imediatamente pela celebração da Páscoa”.
7. No “Purgatório” de Dante, o poeta nos conduz “para o alto da montanha pedregosa da penitência, na direção do nosso mundo primevo – o jardim do Éden”, afirma Frye.
Acima do deserto, afirma o crítico canadense, “os habitantes do jardim abandonaram “o sonho inferior” pelo “sonhos superior”, e a memória por uma vida “na ignorância e no conhecimento pleno” que, como a subida da escada que separa o purgatório do Paraíso, permite ao homem alçar voo. Afinal, “em Dante, o rio Letes, que oblitera a memória do pecado, e o rio Eunoé, que restaura o conhecimento pleno, estão no [jardim] do Éden”.
Ao se permitir (e corajosamente decidir) subir a escada, o leitor verá que consegue, graças ao condão da grande poesia (de Dante a Eliot), “lutar contra o demônio da esperança [desolada] e do desespero” (Frye), vê-se escapando da “gorja dentada de idoso tubarão[vi]”, como Jonas ou Dante:
“Na primeira volta da segunda escada
Voltei-me e vi lá embaixo
A mesma forma torta sobre a balaustrada
Sob o fedor da atmosfera pesada
Lutando com o demônio dos degraus, que usava
A face enganosa da esperança desolada.
“Na segunda volta da segunda escada
Deixei-os contorcidos, voltados pra baixo;
Sem mais faces, a escada era escuridão,
Úmida, entrecortada, como boca de velho que baba, condenada,
Ou gorja denteada de idoso tubarão.
[…]
“Sumindo, sumindo; força além da esperança desolada
Subindo a terceira escada.
Senhor, eu não sou digno
Senhor, eu não sou digno
Mas dizei uma só palavra.”
O fiel (e mesmo o incrédulo) sente-se diante de “Quarta-feira de Cinzas) no dever de tomar uma atitude. O poema teria feito “com que muitos da nova geração (1930) retornassem ao Cristianismo, enquanto outros se precipitavam para o comunismo, como sugere Rose Macaulay” – no depoimento de Russel Kirk, em “A era de T.S. Eliot[vii]”.
E assim, com esse poema complexo, pleno de imagens e símbolos, Eliot nos leva neste período fundamental do cristianismo a refletirmos sobre “a escada [que] contém um simbolismo extremamente rico, sem deixar de ser perfeitamente coerente: ela representa plasticamente a ruptura de nível que torna possível a passagem de um modo de ser a um outro; ou, colocando-nos sob o plano cosmológico, que torna possível a comunicação entre Céu, Terra e Inferno” – como afirma Mircea Eliade.
E do Purgatório – ousaria afirmar este cronista, que pode ser a passagem possível da terra desolada ao jardim sonhado (Éden ou Paraíso) – está o leitor diante de excelente escolha poética para ler e reler nesta Quaresma.
VI
“Embora eu não espere tornar mais
Embora eu não espere
Embora eu não espere tornar
Hesitando entre perdas e ganhos
No trânsito breve em que cruzam-se sonhos
Crepúsculo cruzado de sonhos em meio a parto e morte
(Abençoai-me, pai) embora eu não deseje tais coisas desejadas
Da larga janela para a praia de granito
As velas brancas voam sempre rumo ao mar, o mar por norte
Asas inquebradas
E o coração perdido se enrijece ao celebrar
No perdido lilás e nas vozes perdidas no mar
E o espírito fraco vê-se logo insurgido
Contra áureo cajado curvo e o aroma marinho perdido
Vai logo buscando
O grito da codorna, tarambola girando
E o olho cego cria
Entre os portões ebúrneos as formas vazias
E olfato refaz o sal, sabor da areia da terá
É este o tempo tenso que entre morte e parto se encerra
Lugar de solidão onde se cruzam três sonhos
Entre rochas azuis
Mas quando as vozes arrancadas do teixo se evolam
Que de um teixo outro se arranque outra resposta.
Beata irmã, santa mãe, espírito da fonte, do jardim,
Não permitas que nos escarneçamos com falsidade
Mostra como cuidar e não cuidar
Mostra-nos a imobilidade
Mesmo em meio a essas rochas
Nossa paz em Tua vontade
E mesmo em meio a essas rochas
Irmã, mãe
E espírito do rio, espírito do mar maior,
Não permitas que eu me veja separado
E chegue a Ti o meu clamor[viii].
Adalberto de Queiroz, 64, Jornalista e poeta, autor de “O rio
incontornável” (poemas), Editora Mondrongo, 2017.
[i]
Para ler o poema na íntegra, traduzido por Ivan Junqueira, siga este link: http://bit.ly/2Ub2f8P
Um trecho da recente tradução feita por Caetano W. Galindo pode ser ouvido neste
link do YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=Riiif-jQJXE
[ii]
Para ler o poema na íntegra, traduzido por Ivan Junqueira, siga este link: http://bit.ly/2Ub2f8P
Um trecho da recente tradução feita por Caetano W. Galindo pode ser ouvido neste
link do YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=Riiif-jQJXE
[iii] Depoimento ao Suplemento Pernambuco “Bastidores da tradução da poesia completa de T. S. Eliot – http://bit.ly/2Uf9AEj
[iv] FRYE, Northrop. “T.S. Eliot”. Tradução Elide-Lela Valarini. – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1998, pág. 75-100.
[v] ELIOT, T.S. “Poemas”. Org., tradução e posfácio Caetano W. Galindo. 1ª. ed. – S. Paulo: Companhia das Letras, 2018, pág. 185,
[vi]ELIOT, T.S. op. cit., p.187.
[vii] KIRK, Russel. “A era de T.S. Eliot: a imaginação moral do século XX”. Tradução: Márcia Xavier de Brito. São Paulo: É Realizações, 2011, pág. 324.
[viii] ELIOT, T.S. op. cit., cf. IV acima, pág. 197-99.
[i]
Para ler o poema na íntegra, traduzido por Ivan Junqueira, siga este link: http://bit.ly/2Ub2f8P
Um trecho da recente tradução feita por Caetano W. Galindo pode ser ouvido neste
link do YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=Riiif-jQJXE