Profissionais de saúde relatam situações marcantes da rotina exaustiva que tem vivenciado em um ano e meio de pandemia

Enfermeira, Kelly Regiane dos Santos | Foto: Arquivo pessoal


Medo, insegurança, ameaça, ansiedade, tristeza , cansaço são uma das inúmeras marcas que a pandemia da Covid-19 têm deixado para os profissionais de saúde, principalmente, para aqueles que estão na linha de frente do fronte. Relatos feitos ao Jornal Opção, confirmam os dados de uma pesquisa realizada com mais de 4 mil profissionais da área em que 89,4% estão psicologicamente esgotados.

A enfermeira, especialista em Gestão em Saúde e líder da Unidade de Cuidados Intensivos e Semi-intensivos Adulto  do Hospital das Clínicas (HC-UFG), Kelly Regiane dos Santos, conta as dificuldades de enfrentar a pandemia de frente.

“Passamos por uma transformação muito significativa, tanto nos aspectos físicos quanto nos aspectos psicológicos e psicossociais. De ante de toda essa gravidade começou a surgir em mim e em vários membros da equipe de enfermagem um sentimento muito forte de medo”, desabafa Kelly.

Ela reconhece que é “nato” na profissão enfrentar e ficarem expostos aos chamados de riscos biológicos, como os vírus e bactérias, “mas não nos geram tanta insegurança como o coronavírus”.

“Por mais que use um equipamento de proteção a qual vai fazer uma barreira de segurança, mesmo assim, eu me senti insegura, tive medo de me contaminar ou contaminar colegas, levar a doença para a casa. Antes, o ambiente da minha unidade, que era cirúrgica, não nos causava tanto medo. Hoje, ele faz parte da minha rotina”, completa Kelly.

Mesmo após ter sido imunizada com as duas doses da vacina, a enfermeira relata que o medo  persiste e que provocou outros sentimentos. “Eu sou uma pessoa que desenvolveu ansiedade. Hoje estou em tratamento, mas ao mesmo tempo, mesmo com medo, a gente tem que conviver com ele, porque é meu dever estar ali. Essa é a profissão que eu escolhi”, conta.

Leito de UTI para pacientes de COVID-19 | Foto: reprodução


O médico Clínico Geral, Thiago Augusto, que hoje atua na UPA Flamboyant de Aparecida de Goiânia, relata que desde o início da pandemia trabalha no front da batalha contra o coronavírus.

“Comecei a trabalhar na linha de frente da Covid, no Hospital de Campanha em Anápolis. Para nós, desde aquela época, sempre nos preocupamos com os EPIs (equipamentos de proteção), o ambiente de trabalho e a exposição ao vírus. Essa exposição é muito estressante, e ainda hoje, é muito desgastante para nós, até mesmo pelo contato com os nossos familiares”, diz.

O pai de Thiago integra o grupo de risco, com isso sua preocupação e desgaste emocional aumentaram. “Meu pai é grupo de risco e tive que restringir o contato com ele e isso tem sido muito ruim. O ambiente de trabalho tem o desgaste emocional  grande. Eu sai do hospital de campanha porque perdi colega e a pressão familiar foi grande”, desabafa.

Ele diz que a preocupação maior é com a família. “Não tive Covid, mas a minha esposa, que também é  médica, teve e foi um momento difícil”, lembra. O médico relata que na UPA Flamboyant, em Aparecida, escuta  de muitos colegas, desde fisioterapeutas a enfermeiros, as  mesmas queixas.

Marcas

Trabalhando como enfermeira da linha de frente, Kelly relata as marcas profundas causadas pelas situações vivenciadas. “Por diversas vezes eu vi mães chorando com perda de seus filhos, gestantes que foram a óbito, partos antecipados, pude presenciar a solidão das pessoas as quais tinham que ficar isoladas. Como enfermeira a gente fica presente na vida daquele paciente constantemente durante a sua internação, estamos ali 24h por dia os sete dias da semana e sempre mantendo esse vínculo forte com o paciente. A proximidade sempre foi a minha marca, e com a pandemia nós nos distanciamos. Esse distanciamento nos deixa marcas, todas as questões que eu vivi em relação a essa pandemia, vi muitas pessoas jovens e idosos perderem suas vidas. O desespero bateu sim a minha porta inúmeras vezes”, conta emocionada.

“Todas essas situações vividas por mim até hoje,  abalam o psicológico de tamanha proporção, que as vezes esse desespero é sufocador, por conta de tanta tristeza e tanta situações angustiantes que vivi. Não tem como sair ilesa dessa situação. A preocupação rouba até o nosso descanso. A todo instante vem a minha mente que isso pode acontecer com alguém da minha família. As marcas dessa pandemia vão ficar pelo resto de nossas vidas. É algo que mexe muito com a gente no aspecto psicológico e que pode desencadear outras patologias”, diz a enfermeira.

Kelly é uma entre tantas enfermeiras que vivenciam todos os dias essa rotina exaustiva. “Todos os dias, bem cedo, eu me levanto e me preparo tanto físico quanto psicologicamente para enfrentar essa doença, deixo a minha família para cuidar de outras famílias. O que me faz  estar a tanto tempo no combate a essa doença, é a esperança de dias melhores, na vacinação plena e no fim dessa pandemia. Enquanto isso, estarei na linha de frente”.

Em meio a tanta dor e sofrimento com as perdas, internações e o isolamento, a alta hospitalar dos pacientes é um válvula de escape para os profissionais de saúde. “O que mais me marcou foi que eu tive uma paciente de 99 anos, que chegou a ter  mais de 90% dos pulmões comprometidos, foi parar na UTI com uma chance muito pequena de sobreviver e conseguimos salvá-la. Isso foi muito emocionante. Cada alta marca nos marca, mas essa paciente, em especial, me marcou muito”, conta o médico Thiago Augusto.

Ameaças e ofensas

Além do esgotamento mental, o médico infectologista Marcelo Daher, que atua em Anápolis como infectologista desde 1995, relata que nesse cenário de pandemia chegou a sofrer ameaças.

“Nunca vivenciei antes uma mistura política-científica com essa intensidade como estamos vivendo agora, talvez algo parecido na época da gripe suína, mas a intensidade é diferente. Agora, a pressão é muito grande. É um ano e meio de pandemia intenso vivido por pressão, inclusive com intimidação e ameaça que eu particularmente já recebi, por não ter prescrito os medicamentos ditos como milagrosos. Isso causa muita chateação, em relação a que rumo isso vai tomar. É muito pesado tudo isso, a gente vem fazendo o melhor que a gente pode. Os médicos vem trabalhando incansavelmente buscando o melhor para o paciente nisso tudo”, disse.

“É muito desgastante chegar numa situação como essa, porque o cansaço emocional de acompanhar os pacientes, principalmente os que estão em casa, sabendo que eles podem evoluir de maneira desfavorável, e você ter que manter ele lá, porque se for mandar ao hospital pode não ter vaga. São situações muito complexas e a gente precisa estar preparado para vencer essas barreiras. Precisamos ter em mente que devemos fazer o melhor e isso nos conforta. O reconhecimento por parte dos paciente isso nos reconforta e nos dá ânimo”, destaca o médico.