O Idiota de Dostoiévski e o nosso cristianismo de cada dia

07 março 2025 às 12h07

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O audiobook de um dos dias do feriado ficou por conta do romance O Idiota, de Fiódor Dostoiévski, que revisitei em trabalho acadêmico, onde o príncipe Lev Míchkin é frequentemente interpretado como uma figura cristológica, um homem cuja pureza, bondade e compaixão o tornam um estranho em um mundo dominado pela hipocrisia, pelo egoísmo e pelo jogo de interesses.
Num spoiler, sua trajetória no romance sugere um paralelo com a de Cristo: um ser iluminado, que deseja salvar os outros pelo amor e pela verdade, mas que é rejeitado, ridicularizado e, por fim, destruído pela própria sociedade que tenta redimir.
O clássico russo não esconde a relação entre Míchkin e Cristo, sugerindo em diversas passagens que o príncipe representa um ideal de pureza moral semelhante ao de Jesus. Um dos momentos mais emblemáticos dessa conexão ocorre quando o próprio Míchkin reflete sobre a imagem de Cristo pintada por Hans Holbein, o Jovem, em sua célebre obra Cristo Morto no Túmulo. O impacto que essa imagem tem sobre ele é devastador:
“— Aquele quadro! – murmurou o príncipe, como se estivesse dominado por uma ideia súbita. – Aquele quadro! Um quadro como aquele pode fazer perder a fé!” (O Idiota, Parte II, Capítulo 4).
A pintura de Holbein representa Cristo morto, com um realismo brutal que desafia a iconografia tradicional do Salvador glorificado. Para Míchkin, essa visão simboliza a brutalidade da realidade e a dúvida dilacerante que assombra a humanidade. Se Cristo era um homem, sujeito à decomposição e à morte como qualquer outro, onde estaria a esperança? Essa inquietação reflete a luta de Míchkin para conciliar sua fé ingênua com a dureza do mundo ao seu redor.
Outra passagem que reforça essa relação surge na maneira como os outros personagens o percebem. Rogójin, seu antagonista e ao mesmo tempo uma espécie de irmão espiritual, o compara diretamente a Cristo ao notar sua expressão de amor incondicional e sofrimento resignado. Nastássia Filíppovna, atormentada pela culpa e pela degradação, vê nele uma redenção possível, mas não consegue aceitar essa graça, preferindo se entregar à autodestruição.
Assim como Cristo foi traído, humilhado e sacrificado, Míchkin também sofre rejeição, zombaria e, no fim, um destino trágico. Sua compaixão é vista como fraqueza, sua sinceridade como ingenuidade, sua bondade como loucura. Ele não é compreendido pelos homens que desejava salvar.
Em um dos momentos mais marcantes do romance, quando tenta evitar a tragédia final entre Nastássia e Rogójin, Míchkin é reduzido ao silêncio e à impotência diante da fatalidade do destino humano. Ele é um mártir da sua própria pureza, incapaz de transformar o mundo à sua volta.
Míchkin encarna a figura do Cristo sofredor, aquele que busca trazer luz ao mundo, mas é esmagado por sua própria bondade. Dostoiévski parece perguntar: o que aconteceria se Cristo voltasse à Terra? A resposta que O Idiota sugere é sombria: Ele seria ridicularizado, rejeitado e, no final, destruído. Afinal, como Baudelaire apontou, “o mundo só gira graças ao mal-entendido. Se os homens se compreendessem, não poderiam mais se suportar.”
Essa frase não aparece nas obras conhecidas de Charles Baudelaire nem de Fiódor Dostoiévski. No entanto, seu teor ressoa com o pessimismo existencial e a visão sombria da natureza humana presentes em ambos os autores. Baudelaire, especialmente em As Flores do Mal e em seus ensaios, frequentemente aborda a corrupção inerente ao homem e a necessidade de aceitar ou sublimar essa decadência.
Em O Spleen de Paris, ele sugere que a sociedade é hipócrita e que aqueles que assumem sua própria degradação podem, paradoxalmente, encontrar alguma forma de liberdade. Já Dostoiévski, em Crime e Castigo e Os Demônios, explora personagens que lutam contra sua própria corrupção moral. Ele frequentemente mostra que a redenção não vem da aceitação confortável da própria podridão, mas do sofrimento e da expiação.
Se Cristo voltasse hoje, ele não apenas enfrentaria o desprezo dos céticos e a hostilidade dos poderosos, mas também encontraria imensa dificuldade em lidar com aqueles que reivindicam sua herança espiritual. Os evangélicos, os católicos, os ortodoxos, os cristãos cóptas, os gregos e os espíritas cristãos, cada um a seu modo, disputariam a primazia de sua mensagem, convencidos de deter a única interpretação autêntica de seus ensinamentos. Seria um espetáculo de contradições: enquanto uns se ajoelhariam em adoração, outros discutiriam sua identidade, duvidando se ele era realmente o Cristo ou apenas um impostor. Alguns líderes religiosos exigiriam que ele confirmasse suas doutrinas particulares, enquanto outros tentariam ajustá-lo a seus dogmas e instituições.
O Vaticano enviaria o Papa Móvel para buscá-lo no Monte das Oliveiras, onde a Escritura profetiza sua volta. O chefe da Igreja Universal do Reino de Deus mandaria uma limousine preta, reluzente, para trazê-lo a seus templos monumentais. Outros segmentos cristãos providenciariam veículos de luxo, prontos para desfilar com o Messias, caso ele aceitasse entrar na boleia de seus carros.
No sopé da montanha, repórteres e cinegrafistas das principais redes internacionais aguardariam ansiosos, buscando a exclusiva do século. Se Cristo hesitasse em descer, analistas debateriam no horário nobre a possibilidade de um boicote midiático ao seu silêncio. Mas o texto bíblico é claro: “Este Jesus, que dentre vós foi elevado ao céu, assim virá do modo como o vistes subir” (Atos 1:11). Sua aparição demandaria tempo, pois antes do juízo final, ele deveria operar a ressurreição de todos os mortos. No entanto, diante do frenesi da era digital e da pressa das manchetes, talvez poucos estivessem dispostos a esperar.
Do ponto de vista espírita, a tragédia de Míchkin e a possível rejeição de Cristo em seu retorno refletem o lento despertar da humanidade para a luz espiritual. Kardec ensina que os espíritos mais elevados são incompreendidos no mundo material porque sua vibração está além da sintonia comum dos homens.
O sofrimento de Míchkin, sua pureza ridicularizada e sua impotência diante da maldade alheia ilustram a dificuldade dos espíritos superiores em habitar um mundo ainda dominado por instintos primitivos. Se Cristo voltasse hoje, enfrentaria o mesmo destino, pois a humanidade ainda não se depurou o suficiente para reconhecê-lo sem filtros dogmáticos e interesses sectários. Para o Espiritismo, a redenção do mundo não virá de uma intervenção messiânica, mas da lenta transformação moral de cada indivíduo, que, ao despertar para o verdadeiro sentido do amor e da caridade, permitirá que a luz não mais seja rejeitada, mas compreendida e acolhida.