Não era sujeira sórdida nas mãos dos estudantes, mas sujeira de terra molhada
12 novembro 2024 às 17h23
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Vendo alguns estudantes da Escola Caminhos Brilhantes, todos ainda crianças, realizando plantio de árvores numa ação promovida pela Prefeitura de Goiânia (ArborizaGyn), isso na sexta-feira, 8, dei um salto bem longo para trás. Coisa de cinco décadas. Ressalto que não fui no rastro dos versos casimirianos em busca “da minha infância querida que os anos não trazem mais”. Regressei a Belo Horizonte, mais precisamente ao Colégio Marechal Deodoro da Fonseca, onde fiz o primário. Fui em busca de algumas atividades escolares de então e não encontrei nada de significativo voltado a educação ambiental. Fato que hoje, felizmente, faz parte da rotina das escolas.
Não me lembro de sair da escola para alguma atividade educacional. Tudo só ocorria dentro da sala. Os alunos éramos apenas recipientes vazios a serem preenchidos com lições extraídas da luz refletida na parede da caverna. Lembro-me, por exemplo, que, no Dia da Árvore, o evento ficava restrito a uma tarefa única para cada aluno: fazer em casa numa cartolina um desenho ou montagem voltada à data. Aí ocorria praticamente a mesma coisa: um desenho ou imagem de uma árvore recortada de alguma revista qualquer e com uma frase que praticamente era a mesma nos trabalhos: “Viva o Dia da Árvore”.
O meu contato direto com as árvores acontecia nas que existiam em nosso quintal: uma gameleira gigante (dessa espécie que o povo aqui de Goiânia costuma pôr fogo às escondidas no meio da noite para matá-la), um abacateiro (que rendia muitas vitaminas com leite), uma amoreira, um urucum e uma moita enorme de pés de banana prata. Era nessa gameleira que eu e alguns colegas de bairro brincávamos de Tarzan, que à época era vivido pelo ator Ron Ely. Lógico que não faltava o famoso grito do rei da selva. Cada um de nós, em nosso fascício inexplicável pelo personagem, dando o melhor de seu fôlego na realização do grito. Mas isso somente quando meu pai ou minha mãe não estavam em casa. Confesso aqui que interrompi a escrevinhação desta crônica por alguns minutos para ouvir no Youtube o grito do super-herói. Pesquisei e cheguei ao grito inaugural do homem macaco, que foi dado pelo ator Johnny Weissmuller e continuado por outros atores.
Lembro de certa vez quando os alunos da escola fomos levados a uma fábrica de refrigerante. Era uma alegria só da meninada. Lembro que íamos cantando repetidamente (e isso por orientação de alguma professora): “Passou, passou, passou um avião e nele estava escrito ‘Marechal é campeão’”. No rabisco desta crônica, cheguei a ligar no colégio para saber a idade da instituição. Jussara, a pessoa que me atendeu, me disse “60 anos” e que hoje o nome é Escola Estadual Colégio Marechal Deodoro da Fonseca.
Em meu salto gigante ao passado, não tive como não me lembrar de dona Ana Maria, minha professora de então, era linda aos meus olhos de criança. E criança, como bem sabe você, altaneiro leitor (caso não tenha perdido a virtude de se lembrar que um dia foi uma criança, tem a capacidade de ver, num desenho feito por ela, um elefante dentro de uma cobra, enquanto os adultos veem apenas um chapéu. Isso está em “O Pequeno Príncipe”. Obra de leitura imprescindível para mantermos a criança que fomos dentro de nós e assim não nos tornarmos gente grande aborrecida.
Alguns dos meus colegas de sala éramos apaixonados por dona Ana Maria. Agora a professora deixou de ser “dona” para ser “tia”. Agora nem dá mais para ficar atraído pela beleza da professora, pois é tia, é alguém de “nossa” família. E tal palavra, tanto no feminino como masculino, fugiu do âmbito restrito das escolas e ganhou as ruas de modo geral. É tia pra lá, é tio pra cá. Em 1999, por exemplo, a empresa que fabricava o refrigerante Sukita promoveu uma campanha televisiva a qual mostrava um hilário tio Sukita: um homem de meia-idade que jogava charme a uma bela adolescente, que, nas investidas dele, o chamava de tio e desse modo jogava-lhe um balde de água fria em seu papo fogoso. Hoje isso pode até dar cana.
Crianças não conseguem encontrar os caminhos brilhantes sozinhas. E as primeiras centelhas desses caminhos devem começar dentro de casa. Aqui, inclusive, cabe citar algo precioso dito pelo psiquiatra, educador e escritor Içami Tiba. Segundo ele, fato que muitos pais desconhecem por ignorância, “a educação não pode ser delegada somente à escola. Aluno é transitório. Filho é para sempre”. Vendo os estudantes da Escola Caminhos Brilhantes envolvidos no plantio das árvores (e isso de modo espontâneo, sem que as professoras ficassem lhes falando “crianças, façam isso, façam aquilo”), enxerguei-os como pequenas sementes sendo semeadas na terra fértil do dever da boa relação com a natureza.
Vi-os de mãos sujas, mas não de um sujo sórdido como é tão comum por aí em todos os cantos do mundo. Porém uma sujeira limpa. Sujeira vinda da terra molhada dos locais em que plantaram as árvores.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
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