Idolatria rasgada ao Chico Buarque, sem mais

18 junho 2014 às 11h40

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São sete décadas de um homem bonito de olhos azul turquesa que decifra o ser mulher, o ser brasileiro, o ser humano

O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Vou na estrada há muitos anos
Sou um artista brasileiro (Paratodos, lançada em 1993)
“Vou na estrada há muitos anos”, diz a canção lançada aos 49 anos por Chico Buarque de Holanda, ou simplesmente Chico para entendedores do que esse diminutivo de Francisco representa. “Chico é Chico”, ouço e falo sempre quando a conversa na mesa do bar ou em qualquer outro lugar cai nele, o que se depender de mim ocorre com facilidade. A ocasião mais recente se deu quando perguntei ao produtor cultural que trouxe Adriana Calcanhotto sobre as possibilidades de um show do Chico em Goiânia num futuro não muito longe. Eu já previa o teor da resposta, mas não custa nada perguntar, ossos do ofício. “É muito trágico”, iniciou. “É porque ele só toca quando quer e no formato que quer. Tanto que, da última vez, ele fechou só em Rio, São Paulo e Porto Alegre, mas, CHICO É CHICO NÉ?”, me disse em tom de voz explicativa pelo áudio do WhatsApp. Pois é, assunto encerrado de minha parte — pois não cabe a uma chicólotra (com uniforme e tudo) entrar na seara de que Chico Buarque possa ser ensimesmado.
Quando do lançamento do álbum “Paratodos”, de 1993 para cá, se passaram três décadas (cinco anos a mais que minha idade) e ele chega às suas 70 primaveras, nesta quinta-feira (19/6), como um dos principais nomes da Música Popular Brasileira de uma época e também contemporaneamente, embora não viva inteiramente no Brasil que tanto cantou e defendeu. Chico tem vivido em Paris para o que chama de “produzir” (atualmente está trabalhando em mais um livro, o nono) e já não aparece com nenhuma frequência na mídia, para desalento de sua multidão de fãs, é bem verdade. Em 2011 ou 2012, não me recordo ao certo, acompanhei ao vivo os primeiros contatos de Chico com os fãs pela internet. Foi uma espécie de teleconferência. Fiquei eufórica de pensar que naquele exato momento estávamos numa mesma sintonia. Percebi com o jeito desajeitado daquele moço de olhos de um azul estonteante certa timidez ante aos aparatos tecnológicos. Fiquei babando, obviamente, com as expressões e caretas típicas de músicos, mas que nele desabam em charme.
A última vez em que deu as caras na mídia, em meados de outubro de 2013, foi para falar sobre as biografias não autorizadas. Escreveu num artigo áspero em “O Globo” que não havia concedido certa entrevista ao biógrafo Paulo César de Araújo, que por sua vez o desmentiu. Chico reconheceu a falha na memória (afinal, tinham se passado muitos anos e ele já concedeu diversas entrevistas, normal esquecer de uma ou outra). Eu acompanhei a polêmica, e só. Não emiti opinião. Discordo do meu ídolo em outras questões, as da política atual, por exemplo, mas esse já é outro assunto.

Como consolo de sua ausência, me apego ao número exagerado de discos, DVDs e publicações a respeito da vida e obra dele que insisto em colecionar, “[…] Outro retrato em branco e preto. A maltratar meu coração”.
Ressaltar pormenores da vida de Chico é demasiado repetitivo. Digite no Google e verá que são nada mais nada menos que 479 mil resultados numa busca rápida de menos de 30 segundos. Seus fãs não são aficionados só pelas composições, mas pela história desse homem que tantas vezes sentiu-se mulher para expressar o que só nós sentimos quando amamos e quando deixamos de amar. “[…] quando você me quiser rever, já vai me encontrar refeita, pode crer. Olhos nos olhos, quero ver o que você faz. Ao sentir que sem você eu passo bem demais…” . Dói né? Pois então, “tantos homens me amaram bem mais e melhor que você” — para arrematar a provocação.
Na música que abre essa homenagem, o setentão escandalosamente charmoso que prende meu olhar por longos minutos toda vez que me deparo com uma foto sua intitulou-se “artista brasileiro”. Eu diria que mais que isso, Chico é um artista por inteiro, até nas manias. “Dizem as más línguas” que é muito introspectivo. Compõe, interpreta, expressa, toca, escreve e canta — embora alguns fãs mais críticos digam que sua voz não seja lá essas coisas, o que, logicamente, eu discordo sem nem titubear, porque, ahhh, a voz do Chico… O primeiro contato com a entonação dele causou em mim um misto de emoções ainda por experimentar, tendo em vista que eu não passava de uma moleca de uns 10 anos, pouco mais no máximo.
Fui apresentada primeiramente à música “João e Maria”. Mesmo que pela idade, se fosse do gosto musical da minha família (que prefere sertanejo, fazer o quê?), eu deveria ter conhecido “Saltimbancos” antes das canções de romance. A coletânea infantil acabou vindo um pouco depois, junto com as músicas escritas num período do Brasil que eu só começaria a estudar no ensino médio. Ouvi repetidas vezes “João e Maria” naquela tarde de sol. Queria decorar a letra e sem saber, ou sabendo sem poder interpretar o que significaria não mais que um amor bonito, eu já me encontrava embriagada pela voz do Chico Buarque de Holanda, apresentado com nome e sobrenome e assim citado por mim até conquistar a intimidade de chamá-lo Chico, como quem fala de alguém que vive ali, do lado.
Para conquistar esse grau de proximidade com meu ídolo, mesmo sem qualquer domínio técnico sobre o mundo musical — sou desafinada e sem ritmo na voz, restando-me apenas sambar, o que faço com certa desenvoltura e com um prazer inominável —, comecei a ler as letras no songbooks do Chico (pura sorte ter um irmão músico e bem orientado quanto aos gostos musicais). Letra por letra, algumas sem nem imaginar qual seria o ritmo, e muitas também sem nem saber do que se tratavam, afinal, com 10 anos, na minha época (há 15 anos), criança não sabia ao certo o que era ou fazia um travesti (além de se vestir engraçado e exagerar na make). Nem passava pela minha cabeça o que queria dizer “Dá-se assim desde menina / Na garagem, na cantina / Atrás do tanque, no mato / É a rainha dos detentos / Das loucas, dos lazarentos / Dos moleques do internato…”

Mesmo hoje, quando ouço “Geni e o Zepelim”, um filmezinho perpassa minha mente a cada verso, hoje melhor interpretados, mas com resquícios propositais daquela época em que morria de rir do refrão por conta da inocência que foi-se indo com o passar dos anos. A ingratidão humana sendo ali retratada de maneira tão rica, descontraída e crítica. Sim, Chico é Chico. Uma discografia que beira 40 álbuns, todos de sucesso e ricos em conhecimento, não é para qualquer um não. (Aos menos fãs, eu sei de trabalho grandioso de muitos outros músicos brasileiros, mas esse texto é sobre o Chico, então nem vou citá-los para não estender demais a idolatria.)
Me construí desde a pré-adolescência, adolescência e juventude embalada por Chico Buarque, a quem agradeço profundamente por ter me aberto às portas para conhecer música de qualidade. Não fosse ele e seus intérpretes, muitas cantores e cantores a quem hoje também venero, talvez eu ouviria “Lepo Lepo” ou “Ai se eu te pego” achando que era música… Mas melhor voltar ao foco, afinal, não pretendo criticar o trabalho nem os gostos de ninguém com esse texto, com o qual quero, tão somente, homenagear MEU Chico.
Talvez, por obra do destino, o rapaz com quem me casei, “que me chegou como quem chega do nada e que tem um jeito manso que é só seu”, estava numa apresentação de um grupo que toca muitos sambas de Chico, sendo que o encontro que selou o namoro, dois meses depois, foi numa peça teatral representada só por mulheres que interpretavam canções dele. O espetáculo chamado por “Canção Desnaturada” ou “As Mulheres de Chico” foi exibido no Martin Cererê em meados de 2012. Compartilhamos dessa paixão, eu mais exaltadamente, e ele alimentando meu vício com presentes relacionados ao Chico, como um box de DVDs que quase me causou infarto prematuro quando ganhei de aniversário.
Os 70 anos desse homem brasileiro, artista por inteiro, nunca que passaria incólume por uma chicólatra, nem deveria. Falar de Chico é reviver memórias, é encher o corpo de melodia, é fazer com que uma quarta-feira que antecede o feriado nem seja assim tão cansativa. Remexendo nos meus registros antigos de fã, encontrei um que bem pode fechar este artigo: “Eu tenho certeza que o Chico Buarque não gosta de ser acordado às 8 da manhã pelo pessoal do sindicato tocando ‘Roda Viva’ ou ‘Deus lhe pague’ no carro de som. Tenho certeza que ele não se importa em saber que o nível de umidade relativa do ar aumenta quando ele aparece num ambiente lotado de mulheres. Na verdade, se não fossem seus fãs, o Chico ia ser só um cara legal que joga um futebolzinho na praia de vez em quando, vai pra casa, toma uma breja enquanto vê o Fluminense jogar. A conclusão: fã é sempre chato, mas o fã do Chico nem o Chico aguenta.” (Autor desconhecido)
Parabéns, Chico Buarque!
PS: Pedi a leitores do Jornal Opção que citassem trechos ou canções do Chico como forma de homenagem, eis as contribuições: