Gerarte aposta em trabalho e autonomia para reinserção de usuários da rede de saúde mental em Goiânia

28 julho 2025 às 16h45

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Por meio de bordados, pinturas, papel reciclado e histórias de superação, o Gerarte (Associação de Trabalho e Produção Solidária da Saúde Mental), no centro de Goiânia, resiste como uma das experiências mais importantes de reinserção social na rede de saúde mental da Capital. Fundado como parte da política antimanicomial e vinculado à Secretaria Municipal de Saúde, o espaço promove atividades laborais voltadas não à terapia, mas à geração de renda, autonomia e à convivência em liberdade.
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“Diferente dos CAPS, onde a arte tem papel terapêutico, aqui ela é voltada para o trabalho mesmo”, explica Patrícia Martins, terapeuta ocupacional e do Gerarte. As oficinas oferecidas incluem costura, bordado, tecelagem e produção de papel artesanal com resíduos recicláveis. Os produtos são expostos e vendidos em escolas, parques e feiras, com participação ativa dos próprios associados.

Atualmente com cerca de 25 participantes, a associação funciona com autogestão. “A Prefeitura não mantém o Gerarte 100%, vivemos de doações, vendemos o que produzimos e organizamos os bazares. Os próprios usuários se revezam nas equipes de venda”, diz Patrícia. Um dos exemplos mais marcantes é de um homem que viveu anos internado no Hospital Adauto Botelho, foi abandonado pela família, passou pela residência terapêutica e hoje circula livremente pela cidade, autônomo e integrado.
Para ela, o trabalho é uma ocupação humana que promove saúde, mas que também exige atenção. “Toda ocupação — seja trabalho, lazer ou autocuidado — pode adoecer se não for bem conduzida. Por isso temos que respeitar o perfil, a aptidão e o limite de cada associado”, explica.
A proposta da geração de renda se estende a outras unidades da RAPS. Segundo Roberto Vaz, gerente de saúde mental de Goiânia, estão sendo articuladas iniciativas como a retomada da horta no CAPS Novo Mundo e a implantação de panificação no CAPS Noroeste. “A ideia é transformar a cozinha industrial já montada numa produção de quitandas, pães ou pizzas. Se conseguirmos regulamentar, a prefeitura pode inclusive comprar parte dessa produção, o que dá fôlego à autonomia dos usuários”, adianta.

Apesar das iniciativas, o caminho não é isento de obstáculos. O Gerarte foi diretamente impactado pela extinção da Secretaria Nacional de Economia Solidária e dos repasses federais que existiam até o governo Dilma Rousseff (PT). “Houve um corte com o governo Temer e a extinção completa na gestão Bolsonaro. Isso nos atingiu muito”, relata Patrícia.
Mesmo assim, a expectativa é de reconstrução. Com o novo ciclo político em Brasília, a gestão municipal espera reativar políticas de incentivo à produção solidária, retomar parcerias e ampliar o acesso a ferramentas de autonomia. “Mais do que sobreviver, queremos crescer. Para isso, precisamos de política pública contínua, apoio institucional e reconhecimento de que reinserir é cuidar”, conclui Patrícia.
Exigências excessivas para passe livre
Dentro do próprio Gerarte, o debate sobre o passe livre no transporte coletivo revela um desafio invisível, porém central, à permanência e autonomia dos usuários. Muitos dos associados dependem do benefício para chegar ao espaço. “Tem gente que, quando o passe vence, simplesmente para de vir. Fica sem a carteirinha, sem o dinheiro, e acaba se isolando novamente”, relata uma das profissionais da associação.
O problema, segundo os relatos, é que o acesso ao passe livre para pessoas em tratamento de saúde mental é marcado por exigências excessivas: laudos atualizados, comprovação de frequência constante, entre outros. “O ambulatório só marca consulta a cada três meses. Como é que o paciente vai provar que precisa do passe se não está indo toda semana ao médico?”, questiona uma das participantes.
Mais grave ainda, há casos em que a angústia com a renovação do passe gera tamanha ansiedade, que pacientes interrompem o tratamento ou chegam a provocar recaídas para voltar a se enquadrar nos critérios. “É um sistema que acaba premiando a piora. A pessoa só tem acesso ao transporte se estiver em crise. Isso é perverso”, conclui um dos depoimentos.
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