As férias trouxeram não só maior movimentação nas estradas, como também no céu. Basta olhar para as nuvens para se deparar com pipas, também conhecidas como “raias”, enfeitando a paisagem panorâmica. Entretanto, o período ocioso para os estudantes também fortaleceu o comércio ilegal de linhas cortantes.

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O Jornal Opção acompanhou e negociou, por meio das redes sociais, a venda dos fios de fibra de alto poder de corte por duas semanas. Vendedores de todo o país, inclusive de Goiânia, são responsáveis por enxurradas de anúncios em grupos que chegam a conter mais de 147 mil membros. 

Entre as principais linhas cortantes comercializadas estão a chilena (de algodão, que mistura óxido de alumínio e pó de quartzo) e a indonésia (de náilon, feita com carbeto de silício e cianoacrilato). Com potencial cem vezes maior do que o velho cerol (mistura de vidro moído com cola), os fios de fibra caíram no gosto dos pipeiros pelo valor acessível.

O repórter, que se passou por uma pessoa interessada na compra destas linhas, por exemplo, negociou com um vendedor de Goiânia, identificado como CJ Pipas, a venda de 800 metros de linha cortante por R$ 60. Ou seja, cada 200 metros sairia por R$ 15. 

“Tá tendo branca, rosa, verde e laranja. Por ser linha industrial não dá para saber quantas passadas tem, mas é bem boa. Eu mesmo uso ela e faço o limpa (cortar pipas de rivais). Tenho carretilha, pipas e peixinho também”, afirmou.

Um outro vendedor, de linha indonésia, que possui poder de corte ainda maior do que a chilena, disse ao repórter que comercializava o produto apenas no atacado. Cada 200 metros sairia a R$ 30, com compra mínima de 10 unidades.     

O pipeiro justificou o preço, afirmando que o produto possui três passadas e que é de qualidade. Quanto maior o número de passadas, mais poder de corte a linha possui, tornando o material mais grosso e resistente. Esse tipo de linha pode ter até quatro passadas. 

“Vai variada. Tem azul, branca, marrom, verde, rosa e roxa. A branca é melhor que porque não se destaca tanta. Pegando 20 linhas, cada uma sai por R$ 27”, informou. 

Ambos os vendedores se comprometeram a enviar o produto descaracterizado por meio de aplicativos de transporte. Ao propor pegar a mercadoria pessoalmente, os pipeiros prontamente recusaram, afirmando que não trabalham desta forma e que as entregas eram realizadas mediante pagamento e por corridas de app, como o Uber. O valor da entrega é adicionada a compra.

É crime?

Para coibir o uso de linhas cortantes, as prefeituras de Goiânia e Aparecida de Goiânia lançam anualmente a Campanha Pipa Sem Cerol. Desde de que foi criada, em 2009, apenas a capital registrou oito mortes decorrentes de acidentes com a “brincadeira”.

O ano com a maior letalidade foi 2010, com quatro óbitos registrados. Outras três ocorrências foram registradas em 2011, 2013 e 2015. 

A última morte provocada por cerol, linha chilena ou indonésia ocorreu em 2021. Entretanto, todos os anos são registradas ocorrências com feridos. Apenas em 2024, um motociclista e uma criança tiveram o pescoço cortado. 

“Não existe legislação específica para punir quem fabrica, vende e usa linhas cortantes. Porém, a prática pode configurar a comercialização de produto impróprio para o consumo. Se houver uma lesão em decorrência do uso inadequado e imprudente, a pessoa irá responder pela lesão seja ela leve, grave ou gravissíma”, afirmou o delegado Anderson Pimentel.  

Caso o pipeiro provoque a morte de um ciclista ou motociclista, principais vítimas dos fios de fibra, o mesmo pode responder por por homicídio culposo ou até doloso, visto que no momento em que decide usar um material de alto poder cortante, ele assume o risco de provocar eventuais lesões ou óbitos. Anderson diz que menores de idade não são impunes do crime.

“Crianças e adolescentes podem responder por atos infracionais análogos a esses crimes. Quem praticamente usa esse instrumento são esse segmento social, de jovens a adultos”, concluiu o delegado.

Alguns dos grupos específicos para venda de linhas cortantes | Foto: Pedro Moura/Jornal Opção

Projeto tramita na Câmara 

Em fevereiro, a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que proíbe a fabricação, comercialização e uso de linhas cortantes em pipas e brinquedos semelhantes, estipulando pena de detenção e multas. A proposta agora tramita no Senado.

O Projeto de Lei (PL) determina a proibição de fabricação ou uso da linha com cerol e atinge tanto o ambiente de competição quanto o de lazer privado, em área urbana ou rural. Como será proibida a venda desse tipo de linha a menores de idade, o projeto remete aos fornecedores a responsabilização objetiva pelos danos causados se ocorrer a venda e do uso da linha resultarem danos a pessoas ou objetos.

No Código Penal, a fabricação, venda, comercialização ou uso, por exemplo, será punida com detenção de um a três anos e multa. Para estabelecimentos que descumprirem a lei, a cassação da licença de funcionamento será considerada efeito da condenação.

No caso dos usuários, a pena será a mesma se o fato não constituir crime mais grave. Ainda que o uso seja para fins recreativos, em áreas públicas ou comuns, a pena se aplica, inclusive até à distância de mil metros das imediações de ruas, estradas ou rodovias e mesmo que a pessoa esteja em área particular ou privativa.

Também no código, o uso de linhas cortantes de qualquer natureza em pipas e balões ou de qualquer produto similar passa a ser qualificador para situações de crime de dano contra o patrimônio alheio, que pode resultar em pena de detenção de seis meses a três anos e multa.

Penalidades

Se a linha cortante for utilizada por menor de idade, que é inimputável, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) passará a estipular multa de 6 a 40 salários de referência para o responsável, aplicando-se em dobro quando houver reincidência.

No caso do fabricante, importador ou comerciante irregular de linha cortante ou dos insumos para fabricá-la, o PL estabelece três tipos de penalidades:

  • apreensão dos produtos ou insumos, sem direito a qualquer indenização;
  • advertência, suspensão do alvará de funcionamento e sua cassação, na hipótese de reincidência sucessiva; e
  • multa administrativa, de R$ 2 mil a R$ 30 mil, de acordo com o porte do estabelecimento infrator ou do grupo econômico controlador deste, com duplicação sucessiva a cada reincidência.

Os valores das multas irão para o Fundo Penitenciário Nacional (Funpen). As pessoas físicas, além de sujeitas à pena de detenção, poderão ser multadas com valores de R$ 500 a R$ 2,5 mil, também aplicados em dobro na reincidência. 

Linha chilena | Foto: Pedro Moura/Jornal Opção